por KK Bonates – Luiz Carlos de Matos Bonates
Em 10 novembro de 1904, ocorreu nas ruas do Rio de Janeiro, então capital da República, uma série de manifestações populares que contestavam a obrigatoriedade da vacinação contra varíola e que resultaram em confrontos com as forças de segurança que perduraram até o dia 16 de novembro e, para conter a revolta popular, foi decretado o estado de sítio e revogada a obrigatoriedade da vacinação.
Essa convulsão social recebeu o nome de Revolta da Vacina ou Quebra Lampiões e teve como saldo oficial 30 pessoas mortas, 110 feridas e 945 presas na Ilha das Cobras, que foram posteriormente deportadas, se estrangeiras, ou desterradas para o norte do país, se brasileiras, principalmente para o Acre, à época, território federal recém-incorporado ao Brasil.
Uma das figuras de destaque nesta revolta foi o estivador e capoeira Horácio José da Silva, o Prata Preta, reconhecido por muitos pela liderança em um dos principais redutos da resistência popular, a barricada Porto Arthur, localizada no Bairro da Saúde, assim denominada em referência à violenta batalha ocorrida na guerra russo-japonesa (1904-1905).
O desterro dos socialmente indesejáveis para a Amazônia, um lugar distante, fronteiriço e rústico, data da época do Brasil Colônia estendendo-se até as primeiras décadas da República. O perfil da grande maioria destes indesejáveis era caracterizado pela a pobreza, pelo crime ou por promoverem desordem social.
Em geral, o tratamento dado aos indesejáveis “canas graúdas”, ou seja, aos da burguesia, tais como militares de alta patente, políticos influentes e jornalistas era diferenciado do tratamento dos “canas miúdas”, estes provenientes das classe subalternas. Via de regra, o “cana graúda” era processado, continuava no seu lugar de origem, sendo primeiro preso, depois anistiado e em seguida, retornava à vida pública.
O embarque dos desterrados de 1904 para o Acre deu-se através de navios denominados paquetes, conhecidos como Itas, movidos a vapor e pertencentes à Companhia Nacional de Navegação Costeira e foram alugados pelo Governo Federal para o transporte dos desterrados.
Os prisioneiros eram alocados nos porões em condições de promiscuidade, sem direito de subir ao tombadilho e vigiados por forte contingente de militares.
O trajeto entre o Rio de Janeiro e Belém do Pará levava, em média, 11 dias, e entre Belém e Manaus, 5 dias. Quando em Manaus, os desterrados eram transferidos para barcos regionais de menor calado, os “gaiolas” ou “batelões”. Estes barcos então seguiam rumo ao Território do Acre e, dependendo do seu destino, poderiam navegar por três tributários do Rio Amazonas, os rios Madeira, Purus e Juruá. Se o porto de destino era Pennapolis (antiga Vila Empreza , atual Rio Branco) ou Senna Madureira, o tempo médio da viagem era de 15 dias. Para Cruzeiro do Sul, sede do Departamento do Alto Juruá, cerca de 20 dias.
Prata Preta, um indesejável “cana miúda”, foi preso em 17/11/1904, às 9 horas da manhã, fora das trincheiras de Porto Arthur. Portava consigo dois revólveres, uma faca e uma navalha e seu corpo estava marcado de contusões causadas por espada. Reza a lenda que comandava em torno de 2.000 revoltosos. Foi levado com outros 96 presos para a Ilha das Cobras para serem posteriormente embarcados para o Acre.
Não há muitas informações bibliográficas ou orais sobre Prata Preta. O pouco que se tem está em notícias de jornais, revistas e almanaques do período, que, dependendo da linha ideológica da imprensa (monarquia, república ou anarquismo), afirmam ou negam sua liderança popular, elegendo-o ora como um herói, ora como anti-herói ou vilão, como exemplificado a seguir.
Prata Preta é um homem de 30 anos presumíveis, alto, de compleição robusta, completamente imberbe. A sua fama de homem valente e rixento não foi desmedida, pois ele era visto nos pontos mais perigosos das trincheiras e barricadas, atirando de carabina nas forças atacantes…Ao que parece, Prata Preta era considerado o general Stoessel de Porto Arthur, da Saúde..”
A Notícia, 16 e 17/11/1904, XI, n 271, p 1.
A grande custo ele foi conduzido para a Repartição Central de Polícia, sendo antes desarmado…deu o nome de Horácio José da Silva e foi metido em uma camisa de força, recolhido ao xadrez. Esse crioulo tem a alcunha de “Prata Preta” e, pela sua conhecida bravura como famoso desordeiro, fora proclamado chefe dos sublevados da Saúde.”
Jornal do Commercio, 17/11/1904, n 521, p 2.
(…) um negro terrível, um verdadeiro demônio. Este negro, alto, musculoso, forte entre os mais fortes, tomou logo certa supremacia, assumindo as funções de chefe dos porões. Armado de um grosso pedaço de cabo, entrou logo a surrar bestialmente, ferozmente seus companheiros de infortúnio, só os abandonando quando o sangue rubro esguichava das feridas.”
Jornal do Brasil, 28/12/1904, p 2.
Tudo era mentira, mas ainda existia o Prata Preta alí…à preta! Fomos então saber da história do celebrado Prata. Ora, o Prata também é pilheria. Não se sabe até agora o personagem que mais se salientasse nos famosos distúrbios. Prata Preta costuma parar nos jaburus das ruas da Conceição e S. Jorge. Em geral, é um pai d’agua, quebra água, mata o bicho, embebeda-se. Os últimos conflitos tinham-no excitado, como excitou as mulherinhas das rótulas, fazendo-as gritar mata! Em acessos histéricos. Nosso Prata Preta nunca tinha sido valente.”
Gazeta de Notícias, 18/11/1904, “A última ilusão”, p 2.
Sobre o desterro de Prata Preta para o Acre encontramos algumas referências em noticiosos que apenas citam o fato, mas, devido ao uso partidário e/ou ideológico do nome Prata Preta pela imprensa e na falta de documentação comprobatória plausível, o que resta são pistas, indicativos e evidências de que Prata Preta foi mesmo desterrado e retornou ao Rio de Janeiro anos depois.
A respeito das pistas, indicativos e evidências, citamos a crônica O K. Abrahão, de Armando Sacramento, e a descrição de um carro alegórico no carnaval de 1905, que teve como tema a barricada Porto Arthur, do Bairro da Saúde.
Ainda perseguido pelo homem dos óculos, um dia quase o K. Abrahão foi levado para o Acre juntamente com o Prata Preta. Depois das explicações foi posto a rua e desde então, para evitar outra embrulhada idêntica, não mais saiu de cena.”
O Rio Nu, 4/3/1905, edição 695, p 2.
O Porto Arthur, da Saúde, é mais um carro de crítica. Sobre uma carroça a que se lê a inscrição – Hospital de sangue, há um grande canhão …tapado. Do lado direito uma flamula vermelha indicava o espírito guerreiro de façanhudos desordeiros sob a chefia do intrépido Prata Preta. Lampiões quebrados cercam o carro, em espirituosos democráticos eram sublimes de verve. Guarda de honra de acreanos, transportando o machado e a caneca que os hão de regenerar na terra da borracha.”
Gazeta de Noticias, 4/3/1905, “Pepinos Carnavalescos”, edição 63, p 2.
Por fim, Silva (2013) informa, sem maiores detalhes, que Prata Preta foi desterrado para o Acre no dia 25 de dezembro de 1904 e embarcado no navio Itaipava, com outras centenas de desterrados desconhecidos.
Segundo Bonates (2016) e Bonates & Cruz (2020) o registro documental mais antigo da presença da capoeira no Estado do Amazonas, até a data deste ensaio, data de 1899, contudo, evidências indicam comportamentos sociais relacionados com a cultura da capoeira ou ação de capoeiristas em datas anteriores, podendo-se retroagir até a época da Revolta da Cabanagem (1835-1840).
Intrigante é o fato de a raridade do registro de capoeiragem nos noticiosos amazonenses ser quebrada a partir dos festejos carnavalescos de fevereiro de 1905, portanto, logo após a chegada dos desterrados. Os registros aumentam até 1920, quando ocorre a derrocada do Ciclo Econômico da Borracha, e só voltam a crescer a partir ano de 1972, com a vinda de Julival do Espírito Santo, o mestre Gato de Silvestre, em pleno Ciclo Econômico da Zona Franca de Manaus.
Pelo exposto, três perguntas se fazem pertinentes:
- Prata Preta teria retornado ao Rio de Janeiro?
- Prata Preta teria estado ou permanecido algum tempo em Manaus?
- A passagem e/ou a presença de desterrados teria contribuído para a intensificação de notícias na imprensa sobre capoeiragem no Amazonas no período de 1905 a 1920?
Consideramos que as respostas são positivas para as três perguntas, desde que se aceite para a primeira pergunta a possibilidade de Prata Preta ter sido mesmo desterrado. Apresentamos alguns fatos que podem colaborar para a aceitação dessas hipóteses:
- Notícias em jornais cariocas informam a prisão ou ação de um indivíduo ou de indivíduos com a alcunha Prata Preta, nos anos posteriores à Revolta da Vacina (1909 e 1910) . Embora o nome conhecido de Prata Preta aqui referenciado seja Horácio José da Silva, e o da citação abaixo seja Honório Manoel Leandro, deve-se considerar que aqueles que já estiveram às voltas com a polícia se valiam do expediente de documentos de identificação e endereços falsos para esconder sua verdadeira identidade.
Também foi preso o conhecido desordeiro da saúde Honório Manoel Leandro, vulgo Catta Preta ou Prata Preta. Esse tipo vinha acompanhado desde a Central por um agente, sendo preso quando desembarcava em Campo Grande.”
O Paiz, 31/1/1909, “Eleições Federais”, p 2.
Solidário, político, amigo inseparável, o moralista Dr. Barbosa Lima, como o amigo político de Prata Preta, José do Senado, Camisa Preta, os heroicos cabos eleitorais de um deputado que tem horrorizado o espírito público com os maiores crimes.”
O Paiz, 3/11/1910, “Carta Aberta”, p 3.
Não vale a pena voltar a fazer considerações acerca do fato de terem os incorruptíveis e austeros magistrados apurado a eleição realizada na Biblioteca Nacional, cujos votos continuam encerrados na urna lacrada e depositada na polícia, arrebatada das mãos ensanguentadas do cidadão, galopim eleitoral, que acode a sugestiva alcunha de Prata Preta.”
O Paiz, 20/11/1909, “Conselho Municipal”, p 1.
Aí está a que fica reduzido todo o programa em torno do caso do Conselho, eleito pela junta de pretores, que secundou com notável elevação e patriotismo, os esforços do Prata Preta e da honrosa entourage do glorioso deputado Irineu Machado, empreiteiro-mor da mazorca civilista que virá regenerar os nossos costumes políticos e moralizar o sufrágio universal.”
O Paiz, 07/01/1910, “Água na Fervura”, p 1.
Honório Prata Preta perigoso indivíduo viciado, penetrou ontem no botequim n. 67, da rua D. Clara e pediu Paraty ao caixeiro Raul Santos. Como na véspera Prata preta tivesses bebido e não quisesse pagar, o caixeiro Raul negou-lhe a bebida. Valeu-lhe isso levar uma valente cacetada na cabeça , vibrada pelo desordeiro, que, após o delito, bateu em retirada.”
Gazeta de Notícias, 18/09/1911, “Valente Cacetada”, p 1.
- Quando aportados em Manaus, os desterrados eram transferidos para barcos regionais de menor calado, os “gaiolas” ou “batelões”. Essas transferências poderiam levar alguns dias, dependendo do número de desterrados e da logística do transbordo, entre outras, o que poderia aumentar o tempo de permanência em Manaus e elevar a possibilidade de uma fuga de prisioneiros dos navios para a cidade;
- A primeira cidade portuária com navios aptos para o retorno ao Rio de Janeiro era Manaus e em seguida Belém. Como as condições de vida social, trabalhista e econômica nos seringais eram péssimas, podemos inferir que muitos dos desterrados ao partirem do Acre para Manaus estariam em condições de penúria e, por conseguinte, com grande dificuldade para conseguir trabalho e dinheiro suficiente para sua subsistência e concretizar seu retorno ao Rio de Janeiro. Essas circunstâncias, possivelmente, forçaram que muitos dos desterrados optassem por ficar em Manaus ou Belém.
- Temos assim, que o governador Silvério Nery em sua mensagem proferida na abertura da 2ª sessão ordinária da 5ª legislatura, em 10/06/1905, reclama da presença de capoeiras enviados para o Amazonas pelo governo federal numa tentativa de transformar o Estado em presídio.
- A ação da capoeiragem no Amazonas, principalmente em Manaus, não pode ser mais despercebida e faz com que o governador do Estado do Amazonas, Pedro Alcântara Bacelar, em 1/10/1917, em plena derrocada do Ciclo Econômico da Borracha, sancione a Lei número 920 que promulga Código do Processo Penal do Estado do Amazonas. Nesta lei, no Capítulo VI que trata do Processo das Contravenções, reza nos artigos 251 e 252 o seguinte:
Quando o delinquente for condenado como vadio ou capoeira, a sentença obrigá-lo-á assinar termo de ocupação dentro de quinze dias, contados do cumprimento da pena.” (artigo 251).
Se o termo for quebrado, o delinquente será novamente processado na forma do presente Código do Processo Penal. (artigo 252).
Embora tenha feito uma pesquisa basilar para o estudo dos desterrados para o Acre, Silva (2013) comenta que pouco se sabe sobre as desventuras das pessoas desterradas para as regiões do Acre na primeira década do século XX. Comenta ainda que não se encontram muitos rastros documentais ou testemunhais.
Em consonância com Silva, Patrícia Sampaio (2011) informa que a pesquisa da presença da cultura da capoeiragem no Amazonas não pode ser mais ignorada. Concordamos com esses autores e almejamos que essa frente de pesquisas se concretize e que seja extensiva a região norte como um todo e enfatize, quantitativa e qualitativamente, a contribuição cultural e econômica dos degredados e de outros migrantes na Amazônia.
O nome Horácio José da Silva e a alcunha “Prata Preta” parecem ser comuns para a época da Revolta da Vacina e são encontrados entre 1901-1911 nos jornais do Rio de janeiro referindo-se a pessoas brancas ou negras, a oficial de justiça e a ladrão de galinha, a navalhista e a secretário de bloco carnavalesco, a testemunha de agressão física e a capitão e ainda, a assassino.
Os fatos aqui narrados mostram que a controversa imagem do personagem Horácio José da Silva, o Prata Preta, estivador, capoeirista e homem preto, considerado por muitos como um herói da cultura das ruas, merece esclarecimentos da historiografia, tanto no detalhamento de sua ação na Revolta da Vacina, quanto a sua vida no desterro e seu possível retorno ao Rio de Janeiro. A memória da capoeiragem e das lutas populares no Brasil agradecem se isto for feito.
Bibliografia
Bonates, L.C.M. 2016. A Capoeiragem no Amazonas (1905 a 1980) In: Capoeira em múltiplos olhares: estudos e pesquisas em jogo / Organizado por Antônio Liberac Cardoso Simões Pires e outros – Cruz das Almas: EDUFRB; Belo Horizonte. Fino Traço. Coleção UNIAFRO :13.
———- & Cruz, T.S. 2020. CAPOEIRA: o patrimônio gingado do Amazonas e sua salvaguarda. Conselho de Mestres da Salvaguarda da Capoeira do Amazonas/IPHAN, Manaus, 148p.
Sampaio, P.M. 2011. O fim do silêncio: a presença negra na Amazônia. Belém: Editora Açaí; CNPq 298p.
Silva, F.B. 2013. Acre, a Sibéria tropical: desterros para as regiões do Acre em 1904 e 1910. Manaus: UEA Edições, 326p