Presentes de prestígio na era do comércio de africanos escravizados
Por Ana Lucia Araujo.
A troca de presentes faz parte dos protocolos sociais desde pelo menos a antiguidade. Presentes foram instrumentos centrais em trocas diplomáticas durante a Idade Média e durante o início da era moderna, em várias ocasiões ajudando a selar acordos e iniciar negócios. Que chefes de estado recebem presentes de nações estrangeiras não é nenhuma novidade. Por exemplo, as coleções da Biblioteca e Museu Presidencial John F. Kennedy nos Estados Unidos incluem dezenas de obras de arte e artefatos oferecidos a ele por chefes de estado do mundo inteiro, inclusive africanos.
No Brasil, as trocas de presentes têm sido historicamente associadas à corrupção. Qualquer brasileiro sabe como as trocas de presentes influenciam a vida política e os negócios. Afinal, dar presentes a políticos, funcionários públicos, executivos e empregados de empresas privadas sempre foi uma forma velada, nem tão velada assim, de tentar obter vantagens. Trocas de presentes também marcaram escândalos de corrupção. O mais recente deles foi o caso do ex-presidente brasileiro, o fascista Jair Bolsonaro e a então primeira-dama Michelle Bolsonaro, que receberam joias e relógios de luxo como presentes do governo da Arábia Saudita e, em seguida, venderam ilegalmente vários desses presentes milionários.
O que poucas pessoas sabem é que durante a era do comércio atlântico de africanos escravizados, os comerciantes de escravos europeus e americanos também ofereciam presentes a governantes, representantes oficiais e comerciantes africanos ao chegarem às costas africanas, antes mesmo de iniciar o processo de compra de africanos escravizados para transportá-los para as Américas.
Na maioria das vezes, os presentes eram exatamente os mesmos artigos transportados a bordo de navios escravistas para as costas da África, onde eram empregados como moedas para comprar pessoas escravizadas. Entre esses itens estavam tecidos, álcool, búzios, barras de ferro e artigos manufaturados como fuzis, facas, roupas, panelas e talheres. Nesse contexto, esses artigos eram usados como uma certa forma de tributo, dados aos vários agentes africanos estabelecidos ao longo da costa para iniciar o comércio.
Ao longo dos anos, os comerciantes europeus aprenderam os gostos bem específicos dos governantes e agentes africanos e assim eram capazes de fornecer itens exclusivos aos comerciantes africanos para agradá-los e, em troca, obter os melhores cativos no prazo mais curto possível. Neste contexto, presentes também poderiam ser entendidos como propina, pois ao oferecê-los a agentes africanos, capitães de navios e comerciantes europeus buscavam condições vantajosas no comércio de seres humanos. Por exemplo, tecidos caros e artigos manufaturados como roupas, chapéus e artigos de metal eram reservados a governantes e agentes que ocupavam cargos mais altos. Além disso, como parte dessas trocas, comerciantes africanos também ofereciam homens, mulheres e especialmente crianças como presentes a comerciantes e governantes europeus.
Presentes de prestígio feitos de materiais valiosos continuaram sendo itens essenciais no comércio atlântico de africanos escravizados até meados do século XIX. Mas, assim como os presentes dados a Bolsonaro, há histórias controversas por trás de alguns desses presentes, que hoje fazem parte de coleções de museus europeus e americanos.
Meu livro The Gift: How Objects of Prestige Shaped the Atlantic Slave Trade and Colonialism (ainda sem tradução em português) se baseia em uma dessas histórias para explicar a importância de presentes luxuosos na era do comércio atlântico de africanos escravizados, em que esses presentes também eram perdidos e roubados.
Em junho de 1775, o navio negreiro francês Le Montyon, seguido pela corveta L’Hirondelle, navegou do porto francês de La Rochelle para a costa de Loango, ao norte do Rio Congo, na África Centro-Ocidental, para negociar nos portos de Cabinda e Malembo, na região da atual Angola. Os cativos comprados por esses capitães seriam então transportados nos dois navios até São Domingos, para trabalhar nas plantações da colônia francesa mais rica das Américas. Daniel Garesché, um armador muito rico, comerciante de escravos e futuro prefeito de La Rochelle, então o segundo porto francês mais movimentado para o comércio de escravos, era o dono dos dois navios.
Após chegarem a Malembo, porto que fazia parte do Reino de Kakongo, os capitães de La Rochelle foram convidados paracomprar cativos em Cabinda, um porto situado a poucos quilômetros ao norte e que fazia parte do território do Reino de Ngoyo. Porém, quando o capitão da L’Hirondelle e alguns dos seus tripulantes chegaram em Cabinda foram atacados pelos capitães de navios franceses de Bordeaux e Le Havre, que agrediram e roubaram parte da carga destinada à compra de cativos em Cabinda. Os traficantes de La Rochelle conseguiram se salvar, depois que Andriz Pukuta, o agente comercial (mfuka) do rei de Ngoyo, lhes ofereceu abrigo em sua casa.
Dois anos após esse incidente, Garesché enviou o Le Montyon novamente de La Rochelle para comprar cativos na costa de Loango. Desta vez, o capitão de seu navio carregava uma espada cerimonial feita de prata para ser oferecida como presente a Andriz Pukuta, o agente comercial de Cabinda que dois anos antes tinha salvado a pele dos negreiros franceses. O presente era uma forma de agradecê-lo por ter protegido capitão e os tripulantes de La Rochelle. A robusta espada cerimonial de prata é um objeto impressionante. Com mais de 50 centímetros, o formato da espada é similar ao das bimpaba (no singular kimpaba) ─ espadas cerimoniais entre os povos Vili do reino de Loango, Kotchi do reino de Kakongo e Woyo do reino de Ngoyo, da costa de Loango.
Kimpaba no Musée du Nouveau Monde de La Rochelle. Foto de Ana Lucia Araujo, 2022.
Na ponta da espada, se encontra uma dedicatória gravada e escrita em francês com os dizeres “Andriz Macaye Mafouque le juste de Cabinde”, elogiando o mfuka como sendo um homem justo. Também gravadas na ponta da espada estão guirlandas de flores, elementos decorativos muito comuns em aquarelas e objetos franceses de prata do século XVIII. Além disso, na ponta da espada uma cruz foi entalhada e a falsa lâmina contém uma série curiosa de elementos geométricos com triângulos e semicírculos.
Apesar da beleza impressionante dessa espada, nada disso seria muito surpreendente a não ser pelo fato de, em 1892, mais de um século após a espada de prata francesa ser oferecida a Andriz Pukuta, oficiais franceses sob o comando do então coronel (e mais tarde general) Alfred Amédée Dodds invadiram a cidade de Abomé, capital do rei Reino do Daomé na África Ocidental. Entre os objetos saqueados do palácio estava a espada de prata dedicada a Andriz Pukuta. Ora, Abomé ficava a mais de 3000 quilômetros de distância de Cabinda. Como teria então a espada ido parar nas coleções do rei do Daomé?
Meu livro The Gift acompanha a trajetória tortuosa dessa espada de prata de La Rochelle para Cabinda, e de Cabinda para Abomé, na Baía de Benin e de volta à França, onde hoje se encontra exposta no Musée du Nouveau Monde em La Rochelle. Eu exploro como e por que a espada de prata foi criada, quem a criou, e por que ela era importante para os comerciantes franceses e agentes e governantes na Baía de Loango. Também examino os significados culturais, religiosos e artísticos dessa espada para os governantes e artesãos de Daomé, de onde foi saqueada durante a segunda guerra franco-daomeana em 1892. Eu argumento que a espada de prata fornece uma estrutura complexa e matizada para entender melhor a história do comércio atlântico de africanos escravizados na costa de Loango, onde o Reino de Ngoyo e o porto de Cabinda estavam localizados, bem como nos portos franceses de comércio de escravos, como La Rochelle.
Acredito que esse tipo de estudo oferece uma oportunidade para ressaltar a importância da cultura material e para elucidar os significados das trocas de presentes e objetos de prestígio durante a era do comércio de africanos escravizados. O movimento dessa espada de prata também ilumina as conexões entre a costa de Loango e a Baía de Benin, duas regiões que têm sido estudadas separadamente por estudiosos da escravidão e do tráfico de pessoas africanas. Além de examinar a trajetória complexa desta espada de prata, o livro coloca esse objeto em diálogo com outros objetos semelhantes fabricados na Europa e na África. Ao fazer isso, essa pesquisa pretende contribuir para complicar as discussões sobre a pilhagem e a circulação de objetos africanos e os pedidos de repatriação da herança cultural africana endereçados a museus europeus e americanos.
Ana Lucia Araujo é historiadora e professora titular na Howard University, em Washington DC, nos Estados Unidos. Ela é membro do comitê científico do projeto Rota das Pessoas Escravizadas (antigo Rota do Escravo) da UNESCO. É autora de vários livros, entre os quais estão Reparations for Slavery and the Slave Trade: A Transnational and Comparative History (Bloomsbury, 2023), The Gift: How Objects of Prestige Shaped the Atlantic Slave Trade and Colonialism (Cambridge University Press, 2024) e Humans in Shackles: An Atlantic History of Slavery (University of Chicago Press, 2024).
Sugestões de leitura:
Araujo, Ana Lucia. Humans in Shackles: An Atlantic History of Slavery. University of Chicago Press, 2024.
Araujo, Ana Lucia. The Gift: How Objects of Prestige Shaped the Atlantic Slave Trade and Colonialism. Cambridge University Press, 2024.
Beaujean, Gaëlle. L’art de la cour d’Abomey : Le sens des objets. Paris: Presses du Réel, 2019.
Ferreira, Roquinaldo. “Central Africa and the Atlantic World.” Oxford Research Encyclopedia of African History, 30 October 2019 https://oxfordre.com/africanhistory/view/10.1093/acrefore/9780190277734.001.0001/acrefore-9780190277734-e-53.
Fromont, Cécile. The Art of Conversion: Christian Visual Culture in the Kingdom of Kongo. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2014.
Silva, Daniel Domingues da. The Atlantic Slave Trade from West Central Africa, 1780–1867. New York: Cambridge University Press, 2017.