Por Matthias Röhrig Assunção.
A festa da Penha é celebrada ao redor da igreja Nossa Senhora da Penha desde tempos coloniais. A primeira capela foi erigida no penhasco no século XVII por um devoto conhecido como Capitão Baltazar. Ele contou que, ao subir a rocha para olhar suas plantações, foi ameaçado por uma grande cobra. Apelou para Nossa Senhora quando apareceu um lagarto que afugentou a cobra e ele escapou do perigo. Decidiu então construir a primeira capela. Em 1817 outro devoto pagou pela escadaria, e, em 1870, foi construído um novo templo, ampliado em 1925 para atender o crescente número de peregrinos.
Desde pelo menos o século XVIII a igreja da Penha virou um lugar de peregrinação. Muitos romeiros subiam de joelhos a escadaria que leva ao templo, cumprindo votos feitos à Virgem em momentos de infortúnio. Vinham dos povoados e fazendas ao redor, de Inhaúma, Pavuna, Irajá, Campo Grande e da Ilha do Governador, não somente os fazendeiros e suas famílias, mas também lavradores e trabalhadores escravizados.
Inicialmente a novena que precedia o dia da Santa era marcada por festejos de tradição portuguesa. Tocavam rabecas e violas, e dançavam cana verde, fadinho e chamarrita. Porém, à medida que a festa foi atraindo romeiros da cidade, pescadores da Baía da Guanabara e até trovadores do sertão, suas características mudaram.
Não sabemos ao certo quando apareceu a capoeira pela primeira vez na festa da Penha. Mello Morais descreve um episódio com o famoso capoeira Manduca da Praia, morador na Cidade Nova, que tinha uma banca de peixe na Praça do Mercado, no centro do Rio de Janeiro, durante a década de 1850. Segundo esse autor, Manduca era
[…] um pardo claro, alto, reforçado, gibento, e quando o vimos usava barba crescida em ponta, grisalha e cor de cobre. De chapéu de castor branco ou de palha ao alto da cabeça, de olhos injetados e grandes, de andar compassado e resoluto, a sua figura tinha alguma coisa que infundia temor e confiança. Trajando com decência, nunca dispensava o casaco grosso e comprido, grande corrente de ouro que prendia o relógio, sapatos de bico revirado, gravata de cor com um anel corrediço, trazendo somente como arma uma bengala fina de cana-de-índia.” (Mello Moraes, 2002, 333)
Mello Morais relata que Manduca teve um confronto na festa da Penha com um grupo de romeiros. Diz esse autor que “o Manduca da Praia bateu-se com tanta vantagem contra um grupo de romeiros armados de pau, que alguns ficaram estendidos e os mais inutilizados na luta”. É possível que se tratasse de um grupo de romeiros portugueses, praticantes do jogo do pau luso. Em todo caso, convém assinalar que o confronto deve ter sido de bengala contra pau, já que os capoeiras daquela época, incluindo Manduca, utilizavam-se muito de bengalas e paus em seus confrontos.
É esse o episódio ao qual se refere Mestre Touro na sua fala, em nosso clipe documentário, que pode constar de fato como a primeira menção de capoeira na festa. No entanto, não existem para essa época relatos de roda de capoeira propriamente dita, sendo o mais provável que se tratasse de episódio isolado. A roda de capoeira na festa da Penha só começa em época bem mais recente, talvez na década de 1960 – não sabemos ao certo. Os relatos apontam tanto os capoeiristas do grupo Bonfim, como Deraldo e Zé Grande, quanto Mestres Dentinho e Mintirinha, como iniciadores da roda. Na década de 1970, a roda da Festa da Penha, que acontecia apenas durante o mês do festejo (outubro-novembro), se estabeleceu como uma das principais rodas de rua no Rio de Janeiro.
Veja o primeiro registro cinematográfico de roda na Penha, na década de 1970, e os relatos dos mais velhos em nosso documentário A Roda da Penha:
Agradecemos Raphael Gonçalves Teixeira (Raphael Calvo), mestres Alcino Auê, André Lacé e Paulão Muzenza, por disponibilizar imagens de arquivo, e os mestres Burguês, Camisa, Minhocão, Mintirinha (in memoriam), Paulão Muzenza, Paulinho Salmão, Silas, Touro e Mucama por disponibilizarem seus depoimentos.
Para saber mais:
[Alexandre José de] Mello Moraes Filho. Festas e tradições populares do Brasil. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002 (1a ed. 1888). Ver capítulos “A Festa da Penha” e “Capoeiragem e Capoeiras Célebres”.
Imagem do destaque: Igreja da Penha em 1947 – Disponível em http://rio-curioso.blogspot.com/2010/10/igreja-de-nossa-senhora-da-penha.html