A introdução que o poeta português Plácido de Abreu escreveu para seu romance Os Capoeiras constitui uma referência fundamental para a história da capoeira. Profundo conhecedor do mundo da capoeiragem carioca, do qual fez parte, nesse extrato Plácido descreve a cultura das maltas no final do Império do Brasil.
Agradecimentos ao Mestre Itapoan (Raimundo César Alves de Almeida) por permitir a reprodução dessa transcrição. A ortografia foi atualizada no texto para melhor leitura.
Duas palavras
[1]
Quando encetei este livro, tive por fim, descrever as atrocidades cometidas pelos capoeiras, desde épocas remotas. É um trabalho difícil estudar- se a capoeiragem, desde a primitiva, porque não é bem conhecida a sua origem.
Uns atribuem-na aos pretos africanos, o que julgo um erro pelo simples fato de que na África não é conhecida a nossa capoeiragem e sim algumas sortes de cabeça.
Aos nossos índios também não se pode atribuir, porque apesar de possuírem a ligeireza que caracteriza os capoeiras, contudo, não conhecem os meios que estes empregam para o ataque ou defesa.
[2]
Geralmente fala-se em Nagoas e Guaiamus, sem todavia conhecer-se o que isso quer dizer.
Para não fugir completamente à ideia que tive quando comecei este livro, vou dar algumas informações sobre esses bandos, reservando todos os segredos da capoeiragem, para outro livro que brevemente será publicado sob o título Gaiamus e Nagoas.
Guaiamu é o capoeira que pertence aos seguintes partidos: S. Francisco (grande centro, do qual foi chefe o célebre Leandro Bonaparte), Santa Rita, Ouro Preto, Marinha, S. Domingos de Gusmão, além de outros pequenos bandos agregados a estes.
A denominação que tem estes grupos é casa ou província e a cor porque são conhecidos, é a vermelha.
Nagoa é o capoeira que pertence aos seguintes partidos: Santa Luzia (centro do qual foi chefe Manduca da Praia), S. José, Lapa, Sant’ana, Moura, Bolinha de Prata, além de outros grupos menores filiados àqueles. A cor porque são conhecidos é a branca.
Assim, quando em uma fortaleza (taverna) encontram-se capoeiras adversários, o guaiamu pede vinho e aguardente, derrama esta no chão e saracoteia em cima, lançando, por fim, o vinho sobre a aguardente.
É bastante isso para começar a luta, porque o capoeira não consente que a sua cor seja pisada e muito menos que se coloque sobre ela a cor dos adversários.
É por este motivo que muitos trabalhadores honestos, que usam faixas de cor, têm sido navalhados.
[3]
Os partidos são organizados com um chefe, ajudante, cabos de esquerda e praças.
Há pouco tempo ainda o bando Guaiamu costumava ensaiar os noviços no morro do Livramento, lugar denominado Mangueira.
Os ensaios faziam-se regularmente nos domingos de manhã e constavam dos exercícios de cabeça, pé e golpes de navalha e de faca.
Os capoeiras de mais fama serviam de instrutores àqueles que começavam. A princípio, os golpes eram ensaiados, fazendo-se uso da mão limpa; quando o discípulo aproveitava as lições, começava a ser ensaiado com armas de madeira e por fim serviam-se dos próprios ferros, acontecendo, muitas vezes, ficar ensanguentado o lugar dos exercícios.
Os Nagoas faziam os mesmos ensaios, com a diferença de que o lugar escolhido por eles era a praia do Russel, para os partidos de S. José e Lapa; e morro do Pinto para o de Sant’ana.
Quando faziam qualquer marcha, que é um partido ir ao encontro de outro para brigar, precedia-se sempre um aviso à casa contrária, a fim de que se reunisse o bando. Na ocasião da pegada (briga) era costume cantarem versos numa toada sertaneja.
Os Guaiamus cantavam:
Terezinha de Jesus
Abre a porta apaga luz,
Quero ver morrer nagoa
À porta do Bom Jesus”
Os Nagoas respondiam:
O castelo içou bandeira,
S. Francisco repicou,
Guaiamu ‘stá reclamando
Manoel Preto já chegou.”
[4]
Este assassinato foi feito para descobrar a morte que o não menos célebre Jorge-Marinha praticou em um nagoa, à rua dos Ourives.
Descrevendo este assassinato, vou mostrar ao leitor, quanta perversidade se encontra nesses viciosos que dão-se à prática da capoeiragem:
Houve festa na Igreja de Santa Rita. Os nagoas arrebentaram por volta da uma hora da tarde naquele foco de guaiamus; estes receberam-os à ponta de faca e destacando-se de entre eles, Jorge, chefe da Marinha, agarrou um nagoa pelos cabelos e cravou-lhe por três vezes a faca no coração, deixando-o cair na calçada todo ensanguentado e de bruços.
Corre como certo entre estes perversos, que quando uma vítima cai naquela posição, dificilmente o assassino pode fugir à ação da justiça. Jorge fugiu, porém sendo prevenido daquela particularidade, por um companheiro, voltou atrás, agarrou novamente no cadáver e pela última vez enterrou o ferro homicida no corpo de sua vítima, desaparecendo em seguida.
Diante da morte do Francês seguiu-se para descobrar aquela, a morte do Pinta Preta da Lapa na rua da Alfândega, em frente à travessa de S. Domingos, em noite de Reis; depois desta, seguiu-se a morte do caboclo Jacó, na festa de Paula Matos, (sendo assassinado na rua do Riachuelo), em seguida veio a morte do alemãozinho, junto ao antigo Teatro Lírico do Campo, pelo famigerado César-Maneta que, pouco tempo depois foi também assassinado na praia do Peixe, pelo João-Lagalhé.
Estas represálias têm continuado até a atualidade. Dos crimes a que aludimos, devem existir provas nos arquivos da Polícia.
[5] Extrato do romance
No capítulo I, o capoeira Fazenda enfrenta três capoeiras do partido Guaiamu, no maxixe na rua Senhor dos Passos, perto da rua de São Jorge. Antes dá os nomes dos gatunos e capoeiras infamosos que frequentavam o lugar.
Paulina, atraída para esse lugar “pela desordem das paixões que em seu peito tumultuavam; era arrastada pela força prodigiosa do instinto, a esse enorme cemitério onde se decompõem todas as consciências que não têm a força necessária para fugir-lhes horrorizadas” (p. 13)
Uma vez, porém, fixando a vista num rapaz que se achava no maxixe da rua do Senhor dos Passos, inclinou-se a ele e momentos depois era rodeada por três capoeiras que lhe pediam conta de seu procedimento, com palavras pouco próprias de enamorados.
Paulina quis retirar-se, porém, o rapaz causador daquela cena, agarrou-a pelo braço e disse-lhe ao ouvido: – Fique, não tenha medo.
E voltando-se para o Biju, Coruja e Lagalhé: – Querem alguma coisa desta senhora?
Os três capoeiras, surpreendidos por esta interrogativa brusca e enérgica, entreolharam-se e, passado o primeiro momento, disse o Biju para o Coruja: – Olha a piaba querendo dar sorte.
E terminou esta frase irônica por uma gargalhada à qual juntaram-se na mesma manifestação o Coruja e o Lagalhé.
O rapaz que os havia interrogado levantou-se de um salto, bambeou o corpo em frente do Biju e, num movimento rápido como o relâmpago, abaixou-se e estendeu-se novamente como se fosse impelido por uma mola, indo com a cabeça bater de encontro aos queixos do Biju, que foi cair a dois metros de distância. O Coruja e o Lagalhé fizeram-lhe frente: ambos estavam armados de navalha.
O adversário procurou encostar-se em uma parede e aí esperou pelo ataque. A julgar-se pelo semblante tranquilo, parecia não temer a fúria dos seus inimigos. Havia um sorriso irônico em seus lábios.
O Coruja adiantou-se para ele, o corpo curvado para a frente, a mão esquerda segurando o chapéu, que levava na frente como um escudo, e a mão direita segurando a navalha, um pouco oculta atrás das costas. Do outro lado aproximava-se o Lagalhé, também de navalha e na mesma posição. O Biju havia-se levantado; os queixos esmurrados e um dente partido.
– É direito!…. dissera na ocasião de levantar-se. E saiu em busca de curativo.
O Lagalhé e o Coruja estavam próximos do adversário, fazendo entradas falsas, a fim de verem se ele se descobria, para o rasgarem. Ele compreendeu o jogo. Fez uma investida para tapear, bambeou o corpo em frente aos dois, de olhar fixo nos seus movimentos; fez outra negaça e, quando eles recuaram para fazer nova entrada, o rapaz defensor de Paulina caiu rapidamente sobre as mãos arrastando com violência a perna direita de encontro às pernas do Coruja e, segurando-se na perna esquerda e curva, dando por essa forma o mais famoso caçador que até ali se tinha visto.
O Coruja fez um passeio aéreo e caiu com todo o peso do corpo sobre o braço que deslocou. Levantou-se furioso, por ver-se desmoralizado perante a sua corte, que já dava palmas animando o vencedor; e de olhos injetados de sangue, empunhou a navalha para dar, à bruta, um golpe no seu adversário.
Nessa ocasião, porém, este estava às voltas com o Lagalhé; depois que derrubou o Coruja levantou-se rapidamente e de olhar fixo no inimigo, como querendo magnetizá-lo, fez três entradas falsas, a fim de o atrair a si, no que ele caiu descobrindo o ventre, no qual levou um formidável pontapé, que o fez torcer de dores. O Coruja atirou o golpe; o defensor de Paulina deu um pulo para o lado adversário e com o braço em curva aplicou-lhe uma pancada de cotovelo no olho que o lançou pela segunda vez por terra.
Lagalhé ainda se torcia de dores. Vendo então o vencedor que todos os inimigos estavam fora de combate, levantou a cabeça e lançou um olhar de desafio à multidão que o rodeava, dizendo: – Quem quer tomar as dores?… Nenhuma voz se levantou
(Capítulo I, na edição original, p. 18-23; na reedição, p. 22-23)
Para perfeito conhecimento destes bandos de facínoras, julgo conveniente apontar alguma palavras da gíria que usam entre si:
Distorcer, disfarçar ou retirar por qualquer motivo.
Tapear, enganar o adversário.
Tungar e balear, ferir o inimigo.
Alfinete, biriba, biscate e furão, estoque ou faca.
Sardinha, navalha.
Caçador, tombo que o capoeira dá, arrastando-se no chão sobre as mãos e o pé esquerdo e estendendo a perna direta de encontro aos pés do adversário.
Moquete, marretada, soco.
Banho de fumaça, tombo.
Alto da Sinagoga, rosto.
Passo de constrangimento, vacilação do inimigo quando leva tombo ou é vencido; ato de retirar-se cabisbaixo.
Passo de siricopé, pulo que dá o capoeira depois que faz negaça para ferir.
Marcha, procura de adversàrio.
“Vou ver-te, cabra”, ameaga para brigar.
Carrapeta, pequeno esperto e audacioso que brama desafiando os inimigos.
Bramar, gritar o nome da província ou casa a que pertence o capoeira.
Senhora da cadeira, Sant’ana.
Velho carpinteiro, S. José.
Velho cansado, S. Francisco.
Senhora da palma, Santa Rita.
Espada, Senhora da Lapa.
Sarandeje, pequenos capoeiras, miuçalha.
Endireitar, enfrentar com o inimigo.
Mole, covarde.
“Leva, leva”, grito de vitória, perseguição ao inimigo.
Chifrada, cabeçada.
Encher, dar bordoada.
Bracear, dar pancada com os braços.
Porre, pifão, bebedeira.
Topete a cheirar, cabeçada.
“Não venhas, que sais do passinho mole”, sê prudente, porque levas um tombo.
Lamparina, bofetada.
Branquinha, aguardente.
Está pronto, está ferido.
Foi baleado, foi ferido.
“Quero estia, quero tasca, senão bramo”, quero parte disto ou daquilo roubado, senão denuncio.
Deixa de saliências, não contes patranhas.
Rujão, batalhão ou sociedade.
Roda, vamos embora.
Jangada, xadrez de Polícia.
Palácio de Cristal, Detenção.
Chácara, casa de correção.
Fortaleza, capela, taverna.
Dar sorte, (diversas aplicações) cair em ridículo ou cousa bem desempenhada.
É direito, é destemido.
Para saber mais:
Moura, Jair. Plácido de Abreu. Os Capoeiras (Epítome e Notas). Salvador: JM Gráfica Editora, 2019.
Soares, Carlos Eugênio Líbano. A negregada instituição. Os capoeiras no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do RJ, 1994.
Abreu, Plácido de. Os Capoeiras. Rio de Janeiro, Tipografia José Alves Editor, 1886.
O extrato corresponde à introdução da novela, transcrita por Jair Moura e originalmente publicada em Negaça. Boletim da Ginga-Associação de Capoeira, Salvador, ano III, no. 3. 13 de novembro de 1995.
Por sinal, o saudoso Frede Abreu disponibilizou no ano 2009 uma cópia da versão original para o nosso acervo.
Olá. Essa é uma obra de muito difícil acesso. Trabalho na Biblioteca Central da Universidade de Brasília e recebemos pedido desta obra por parte de um usuário. Seria possível você nos ceder uma cópia digital da cópia que receberam? Obrigado.
o mestre Burguês (muzenza) tem alguns exemplarios disponiveis desse réédição. contatar ele por adquirir.
Pelos que estão fora do Brasil: https://www.capoeirashop.fr/pt/livro-capoeira/519-livro-os-capoeiras-placido-de-abreu-1886.html
Durante um bom tempo, quando se falava deste livro de Plácido de Abreu, traziam a informação de que a obra teria sido lançada no ano de 1888, o que não procede. Antes mesmo do lançamento do site contendo os periódicos digitalizados da Biblioteca Nacional – BN, já tínhamos pontuado para alguns pesquisadores de que Os Capoeiras já tinha sido publicada antes de 1888, devido a mesma ser relacionada em outro livro de Plácido, A Luta dos Vícios, de 1886, em uma sessão intitulada: Obras de Plácido de abreu Publicadas. Posteriormente, a informação do ano de 1886 acaba por ser confirmada com as matérias vinculadas em periódicos do período que foram disponibilizados pela BN.
Obrigado por esse esclarecimento, Joel Alves Bezerra!