Mestre Dengo

Nascido em Macaé (RJ), em 14 de agosto de 1957, Manoel da Cruz Vieira, Mestre Dengo, é um dos protagonistas da disseminação e crescimento da capoeira na Região dos Lagos e no norte do estado do Rio de Janeiro.

Salvio Fernandes de Melo (26 de maio de 2021)

Mestre Dengo Marca
Mestre Dengo na Sede da Associação de Capoeira Raízes de Aruanda em Macaé (RJ). Fevereiro de 2021. Acervo pessoal do mestre.

Seu longo período de atividade como capoeirista e mestre vem contribuindo para formar diversos/as mestres/as nessa região, que vai de Rio Bonito a Campos dos Goytacazes. E, sem dúvida alguma, a história da capoeira em Macaé passa pela vida e trajetória do M. Dengo.

M. Dengo começou a treinar capoeira no início da década de 1970 em Macaé, mas seu amor e reverência à capoeira começa com um antigo programa cultural de rádio chamado Projeto Minerva. Foi neste programa, nas sessões dedicadas ao folclore e à cultura brasileira que ele ouviu falar da luta dos escravizados pela liberdade, das fugas das senzalas para os quilombos, das façanhas dos negros capoeiras perseguidos. Foi também nesse programa de rádio onde escutou o ritmo dos berimbaus e os batuques dos atabaques pela primeira vez, assim como as cantigas de lamento (banzo) do/a negro/a escravizado/a. M. Dengo comenta que adorava escutar esse programa de rádio e que não perdia nem uma edição porque falava da capoeira, da cultura afro-brasileira, do folclore brasileiro:

Quando dava a hora, corria para frente do rádio e ali ficava escutando a narração do locutor (…) me emocionava de uma forma que jamais me sentiria em minha vida. Um aperto no peito, como se estivesse vivenciando aquele momento” (Mestre Dengo, autobiografia não publicada).

Entre o Projeto Minerva e os encontros com seu primo Carlos Ribeiro, para irem ao campo de futebol próximo de casa, para “tocar o pé um no outro”, sua paixão pela capoeira foi crescendo, e ele passou a querer mais do que “brincar de chutes e pulos” (Autobiografia). Foi quando começou a treinar com Mestre Levi, nascido na cidade de Campos, mas crescido em Macaé, que foi um dos grandes seus amigos de infânciaSe encontravam no Ginásio Luiz Reid para jogar futebol, mas depois do jogo sempre ficavam jogando capoeira. Com Levi, Manuel Vieira começou de fato a treinar e aprender capoeira, como ele próprio afirma: “com ele comecei, de verdade, a aprender a arte de jogar capoeira. Ele teve a paciência de me ensinar a gingar e me mostrar os primeiros passos” (Autobiografia). Em 1974, neste contexto de capoeira nas ruas, praias, ginásios e morros de Macaé, Levi, ainda sem a titulação de mestre, Manuel e outros amigos criaram o primeiro grupo de capoeira de Macaé, o grupo Silêncio com a Fera, que se desfez pouco tempo depois com a ida de Levi para Duque de Caxias.

Para seguir os treinamentos com a capoeira, o grupo Silêncio com a Fera se ligou ao recém-formado professor Pavão (Paulo Ribeiro), de Campos, aluno do Mestre Cabrita (que não está mais na capoeira). Em 1979, Dengo foi formado professor de capoeira e começou a dar aulas de capoeira, primeiro, no espaço do barracão, no atual prédio da Prefeitura de Macaé. Em 1980, ele passa a dar aulas nos espaços do Sindicato dos Ferroviários.

Assoc Angonal M Bocka

Ainda no início dos anos de 1980, já consolidado como professor de capoeira, M. Dengo continua sua formação em um novo grupo, a Associação de Capoeira Angonal, criada pelo Mestre Bóca (Jorge Leite), nos anos 1970, em São Gonçalo (RJ). Dengo foi convidado pelo próprio presidente da associação a se integrar ao movimento, fazendo parte da Angonal por quase 20 anos, até sair em 1999. Foi formado contramestre e mestre, pelo M. Bóca ao longo desse período. 

Ainda em 1999, M. Dengo inicia sua trajetória como coordenador do seu próprio grupo ao criar a Associação de Capoeira Raízes de Aruanda, em Macaé. O Raízes de Aruanda surgiu como forma de “renovação, naquilo que nós acreditávamos e acreditamos, até os dias de hoje, que é possível realizar um trabalho sério e coletivo através do respeito mútuo, responsabilidade e comprometimento” (Autobiografia).

Como mestre e presidente da Associação de Capoeira Raízes de Aruanda, Dengo desenvolve inúmeros projetos sociais com a capoeira em periferias e escolas na Aroeira, Botafogo, Barra, Barreto, Morro de São Jorge, Imbetiba e Sol y Mar, todos bairros de Macaé. Desta forma, o Raízes de Aruanda contribui com muitas crianças e adolescentes que vivem em áreas de risco e de vulnerabilidade social. Através da capoeira, do jongo e das demais manifestações afro-brasileiras, M. Dengo gera referências e parâmetros para a vida e a carreira profissional de muitos jovens. Alguns vieram a se tornar mestres, contramestres e professores de capoeira. Tais projetos e ações sociais têm como diretrizes principais a disseminação das tradições e manifestações populares afro-brasileiras; o trabalho em zonas periféricas e com populações em vulnerabilidade social; a formação do vínculo identitário e autoestima da população negra e pobre; o fortalecimentos dos traços comunitários coletivos.

Raízes De Aruanda

Dois aspectos formadores da trajetória do M. Dengo surgem como alicerces da existência da capoeira em Macaé e região norte fluminense. O primeiro a ser destacado é a independência, em termos de formação e linhagem de capoeira, que o M. Dengo possui em relação aos grandes mestres e grupos de capoeira da cidade do Rio de Janeiro. Algo que se estende para outros mestres e grupos da região norte-fluminense, que apareceram a partir das décadas de 1970 e 1980, não descendendo diretamente das linhagens de capoeira herdadas dos quatro mestres que teriam contribuído profundamente para a formação da capoeira carioca, a saber, mestres Artur Emídio, Paraná, Roque, Mário Buscapé (cf. Os Mestres no Rio de Janeiro´, in https://capoeirahistory.com/pt-br/mestres-az/, 2020).

De modo geral, Dengo e seus contemporâneos foram aprendendo e se formando na capoeira de uma forma independente e quase autodidata, pois o início de suas trajetórias se dá nas ruas, praias e clubes de cidades como Macaé e Campos. Apesar da existência de grandes grupos como a Associação de Capoeira Angonal e o grupo Senzala (Cabo Frio), na região a partir dos anos 1980, muitos meninos e meninas se reuniam nas ruas, praças e praias com amigos/as que sabiam um pouco de capoeira e ali começavam a dar as primeiras pernadas, como aconteceu com M. Dengo na sua parceria e amizade com M. Levi. Com o passar das décadas, à medida que M. Dengo e outros mestres mais antigos da região, como Bóca e Machado (São Gonçalo) se consolidavam como mestres e expandiam seus grupos, crianças e jovens da região começaram a tê-los como referência e lugar para aprender capoeira. Desta forma, as gerações de capoeiras surgidas em Macaé, Cabo Frio, São Pedro da Aldeia, Rio das Ostras, a partir da década de 1990 não necessitaram do/das grandes mestres/as da cidade do Rio de Janeiro e dos grandes grupos para treinarem ou para se aperfeiçoarem como capoeiristas.

Quando M. Dengo faz referências a lugares e mestres(as) que o teriam ajudado a se formar como capoeira, ou com quem mantém relações de amizade e parceria, ele menciona Duque de Caxias, Niterói (RJ) e Vitória da Conquista (BA), entre outras, através da presença de mestres como Levi, Formiga e Pantera, mas pouca ou nenhuma referência faz a grupos e mestres da cidade do Rio de Janeiro. De fato, M. Dengo faz uma capoeira do interior do Rio de Janeiro embora conectada a outras cidades do estado e do interior da Bahia, sem ter muito contato ou envolvimento com a capoeira praticada tanto na cidade do Rio, quanto em Salvador (Autobiografia).

O segundo aspecto formador da capoeira do M. Dengo e, de modo geral, da região norte fluminense é a profunda ligação com as culturas e tradições populares locais, especialmente às de matriz africana, presentes nas vivências cotidianas de muitos dos grupos de capoeira da região. Assim, o jongo, o samba de roda, o maneiro-pau, as cantigas e temas caros às comunidades de Macaé e cidades próximas, fazem parte do repertório formativo e de trabalho de muitos capoeiristas. O próprio M. Dengo possui uma ligação forte com a religiosidade de matriz africana, além de fazer e ensinar jongo e samba /samba de roda (rural). Ele costuma dizer que suas influências no samba de roda, por exemplo, estão ligadas à Bahia, especialmente, à cidade de Serrinha. Por sua vez, as influências recebidas do jongo chegam de localidades próximas a Macaé, como o Quilombo Machadinha, em Quissamã, ou dos grupos de jongo de Cabro Frio.

A Associação das Raízes de Aruanda em Macaé realiza em sua sede diversas ações e eventos ligados às festas populares e datas importantes para a comunidade afro-brasileira, bem como celebrações de datas religiosas, sejam de origem católica ou de matriz africana. Após os treinos semanais, às terças e quintas, M. Dengo reúne alunos/as e visitantes para tocar e cantar os ritmos e cantigas de capoeira, além de pontos de jongo e cantigas de samba de roda, o que acaba por se tornar uma oficina de ritmos e percussão afro-brasileiros. Faz alguns anos, a sede do Raízes de Aruanda também abre seu espaço, nas noites de sexta, para rodas e oficinas de jongo e, nos sábados à noite, recebe importante roda de samba, reconhecida e frequentada pela comunidade de Macaé e cidades ao redor, isso até antes da epidemia de Covid 19. Esse relacionamento e convivência com manifestações culturais afro-brasileiras cultuadas e sua transformação em ações pedagógicas para o ensino da capoeira, por parte do M. Dengo (e outros mestres e capoeiras), promove a formação de uma geração de capoeiristas com ótimo conhecimento rítmico-musical e com os pés fincados nas raízes afro-fluminenses e afro-brasileiras.

O trabalho do M. Dengo se estendeu para além das fronteiras de Macaé através dos professores(as) e mestres (as) formados por ele nesses vinte e dois anos de existência da Associação Raízes de Aruanda, levando a capoeira, o jongo e o samba rural a outras cidades e localidades da região, como Cabo Frio, Campos, Rio das Ostras e Rio Bonito, onde há um núcleo do Raízes de Aruanda, coordenado pelo Mestre Coelho. Alguns capoeiristas foram formados mestres dentro do Raízes de Aruanda, como Mestre Ivo (já falecido), Mestre Grande e Mestre Marcelo (Macaé), Mestre Coelho (Rio Bonito), Mestre Pingo (Cabo Frio). Em Rio das Ostras, o Mestre Mistério está ligado há muitos anos ao M. Dengo, apesar de não ter sido formado por ele.

Hoje, aos 64 anos, Mestre Dengo, com seu jeito acolhedor e afetuoso, e com enorme disposição para treinar e dar aulas, continua a transmitir os saberes da capoeira e das tradições afro-brasileiras a crianças, jovens e adultos olhando para as comunidades e povos tradicionais ao seu redor, valorizando uma capoeiragem fora dos grandes centros urbanos e capitais, profundamente enraizada a uma identidade negra fluminense, que tem no batuque, no atabaque e na ginga a força de uma herança afro-diaspórica.

Salvio Mello Foto p blog

Integrante da escola de capoeira Angola Laborarte (São Luís – MA), onde é formado professor de capoeira, Salvio é frequentador dos treinos e eventos da Associação Raízes de Aruanda (Macaé-RJ). Professor Adjunto da Instituto de Humanidades da Universidade Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira – UNILAB (CE), onde leciona matérias sobre capoeira e samba nos cursos de Pedagogia e Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades (BHU).

Referências:

IBGE | Cidades@ | Bahia | Serrinha | História & Fotos. https://cidades.ibge.gov.br › ba › serrinha › histórico, 2017. Acesso em 11 de abril de 2021.

Os mestres do Rio de Janeiro. capoeirahistory.com/pt-br/mestres-az/, 2020. Acesso em 10 de abril de 2021.

VIEIRA, Manoel da Cruz (mestre Dengo). Autobiografia não publicada. S/D.

Rio de Janeiro

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