Por Juan Diego Díaz.
Você já escutou falar do Mestre Paraná? Na afirmativa, você sabia que ele gravou um dos primeiros discos comerciais de capoeira no início da década de 1960?
Gravações de campo de música de capoeira remontam aos anos 1940 quando o linguista norte-americano Lorenzo Dow Turner visitou a Bahia e gravou uma série de mestres de capoeira, incluindo Cabecinha, Bimba e Juvenal (1940-41). Nas décadas seguintes, outros pesquisadores, como o antropólogo norte-americano Anthony Leeds (1951) e a antropóloga francesa Simone Dreyfus-Roche (1955), continuaram essa documentação sonora, fornecendo materiais preciosos para o nosso entendimento de como se desenvolveu, historicamente, a estética musical da capoeira.
Os primeiros discos comerciais dedicados à capoeira somente foram lançados na década de 1960. Curso de Capoeira Regional, do Mestre Bimba (1962) e Capoeira da Bahia, de Mestre Traíra(1963) tornaram-se referências para a comunidade da capoeira, o primeiro para os praticantes da capoeira regional e o segundo para os angoleiros. Em1967, Camafeu de Oxossi lançou Berimbaus da Bahia, um disco combinando candomblé e capoeira. Finalmente, em1969, foi lançado Capoeira Angola: Mestre Pastinha e sua Academia e Academia de Capoeira Angola São Jorge dos Irmãos Unidos do Mestre Caiçara, o último combinando capoeira e samba-de-roda. Mas, um disco gravado já em 1963 por outro mestre de capoeira baiano conhecido como Paraná, acabou sendo pouco divulgado durante muito tempo.
Oswaldo Lisboa dos Santos (1922-1972), conhecido como Mestre Paraná, foi um mestre de capoeira baiano que seguiu a maior parte de sua carreira fora do estado. Ele se mudou para o Rio de Janeiro em 1945 e na década de 1950 criou o grupo Conjunto Folclórico de Capoeira, que se tornou depois o grupo de capoeira São Bento Pequeno. Segundo André Luiz Lacé Lopes, Paraná convidou dois outros baianos para gravar seu disco: Mucungê e Santo Amaro. Em outro depoimento, Mestre Gegê, outro capoeirista baiano, confirmou a participação de Mucungê, mas sustenta que o segundo músico convidado por Paraná teria sido o baiano Onça Preta.
As gravações comerciais de música de capoeira apareceram na década de 1960 num momento em que o interesse nacional pela capoeira foi estimulado por dois processos: 1) uma série de filmes em que a capoeira figurava de maneira proeminente, como Vadiação (1954), de Robatto Filho, e mais particularmente, O Pagador de Promessas (1962), de Anselmo Duarte; e 2) a emergência de grupos folclóricos que apresentavam capoeira junto a outras manifestações culturais afro-baianas. O filme de Duarte estava baseado na peça de teatro homônima de Dias Gomes, encenada em São Paulo, em 1960, e no Rio, em 1962. Paraná ficou mais conhecido por conta de seu conjunto folclórico e de sua participação na peça no Rio onde tocava berimbau. No entanto, sua ausência física do universo da capoeira em Salvador, o epicentro da capoeira até a década de 1960, pode explicar o fato de o disco não ter sido muito divulgado.
O disco de Paraná foi gravado no Rio de Janeiro e lançado pela CBS em 1963 como um compacto de 33 rotações que somente permitia aproximadamente cinco minutos de gravação de cada lado. O compacto contém quatro faixas intituladas “São Bento Grande,” “São Bento Pequeno,” “Angola” e “Avise a meu Mano.” Enquanto as três primeiras são puramente instrumentais e referem-se a nomes de toques de berimbau conhecidos, a última faixa contém um corrido de capoeira bem conhecido nas rodas de todos os estilos. Nesse sentido, Mestre Paraná alinhava-se com os discos de Traíra e Bimba e juntos estabeleceram um padrão para gravações futuras: combinavam algumas faixas de toques tradicionais de berimbau com outras de cantigas de capoeira acompanhadas pela bateria. Mas em contraste com seus discos contemporâneos, e provavelmente devido à falta de espaço, Paraná somente gravou um corrido, ao invés da sequência típica ladainha-chulas-corridos (por exemplo, as primeiras quatro faixas do álbum de Traíra).
O selo do disco de Paraná com as quatro faixas – “São Bento Grande,” “São Bento Pequeno,” “Angola” e “Avise a meu Mano.”
Observações gerais
Existem algumas características comuns às quatro faixas do disco do Paraná. Em primeiro lugar, a bateria consistia de um atabaque, pelo menos um pandeiro (talvez dois) e três berimbaus (que chamaremos gunga, médio e viola, segundo a nomenclatura mais usada hoje). Nas faixas instrumentais, Paraná afinou os berimbaus como segue: viola (Reb4 – Mib4), médio (Si3 – Reb4), e gunga (Lab3 – Sib3). No entanto, na última faixa Paraná unificou a afinação dos berimbaus em Lab3 – Sib3 para acompanhar a cantiga. A segunda característica geral concerne ao papel normativo de cada instrumento. Como em toda bateria de capoeira, o atabaque e os pandeiros providenciam uma base rítmica estável em 2/4 para os berimbaus, que, por sua vez, lideram o conjunto com muita liberdade de improvisação.
Cada toque é constituído por uma textura musical complexa de três berimbaus que às vezes se alinham verticalmente, mas, de fato, frequentemente se interligam formando polirritmia. Em cada uma das faixas instrumentais os berimbaus tendem a começar num modo relativamente estável, tocando padrões rítmicos que identificam o toque. Aos poucos a textura torna-se mais complexa com os três berimbaus improvisando variações múltiplas e simultâneas. A liderança e o grau de improvisação dos berimbaus no disco do Paraná são mais complicados que nos outros discos ou em apresentações de capoeira ao vivo, onde o berimbau de som mais grave comanda e a viola assume o papel central na improvisação. Por exemplo, Paraná começa cada faixa com a viola e em várias ocasiões esse berimbau permanece relativamente estável comparado ao gunga e médio. Tipicamente as improvisações incluem sincopas, ritmos de divisão ternária, e tresilhos (3-3-2—as palmas no samba-de-roda).
Toques
Segue uma transcrição dos padrões mais característicos das faixas instrumentais do disco de Paraná.
“don”: nota produzida batendo a corda solta do berimbau
“din”: nota aguda produzida batendo a corda com o dobrão apertado contra a corda
“chi”: chiado produzido batendo a corda com o dobrão folgado contra a corda
“Avise a Meu Mano”
Como já foi ressaltado, essa é a única faixa do disco de Paraná contendo uma cantiga, no caso o corrido “Avise a meu mano”, que é comum ser escutado em rodas de todos os estilos. Como em todos os corridos, ele assume a forma de chamada e resposta e, nessa gravação, o refrão é repetido duas vezes antes da chamada do solista.
Paraná claramente afinou os berimbaus nessa faixa em Lab – Sib para acompanhar o canto em La bemol major. Se tivesse mantido a afinação das faixas instrumentais, vários tons dos berimbaus teriam chocado com a melodia, especialmente a nota aberta do médio (Si), que choca com a terceira maior do acorde La bemol major.
A preocupação de Paraná para com a afinação do berimbau com a melodia da cantiga também está presente nas gravações da maioria de seus contemporâneos. Na sua faixa “Santa Maria,” por exemplo, Traíra afinou os três berimbaus como segue: berra-boi (Fa3 – Sol3), gunga (Sol3 – Lab3), e viola (Sib3 – Do4) e com esta afinação, o mestre cantou a ladainha em Fa menor.1 Note que a nota mais baixa (Fa) funciona como a fundamental e as outras pertencem a tonalidade de Fa menor, incluindo a triada Fa, Lab e Do. Em “Quadras” e “Corridos,” mestre Bimba afinou seu berimbau em Solb3 – Lab3 e cantou usando a maioria das notas da escala de La bemol maior. Caiçara usou dois berimbaus afinados em uníssono (La3 – Si3) nas faixas cantadas e utilizou ambas notas como fundamentais no canto: Na primeira faixa ele canta em Si maior e na segunda em La maior. Em “Quem quiser moça bonita,” Camafeu de Oxossi afinou o gunga em Sol3 – La3 e a viola em Do#4 – Re4 (embora a viola só toca a nota baixa) e canta em Mi menor. Embora nenhum berimbau toca a fundamental, os três tons tocados pelos berimbaus pertencem a escala de Mi menor—note que a nota mais baixa do gunga (Sol) e a relativa maior de Mi menor. Todas essas gravações dos anos 60 mostram consistência na sua preocupação em afinar os berimbaus e a melodia da cantiga, mesmo que cada mestre materializou essa preocupação de maneira distinta. É interessante anotar que Pastinha, considerado o guardião das tradições da capoeira angola, foi o único que se afastou dessa lógica no seu LP. Na primeira faixa, por exemplo, o berimbau é afinado em Do3 – Reb3 mas Pastinha canta o que aparenta ser Sol major.
É importante notar que afinações precisas do berimbau não acontecem necessariamente nas rodas de capoeira, onde cantadores com diferente registro vocal se revezam o papel de solista nos corridos. Além do mais, numa roda ao vivo, os arames dos berimbaus quebram com frequência e são substituídos por outros arcos que podem ou não estar afinados na mesma nota do arco que substituíram. No entanto, a preocupação consistente com a afinação nessas gravações históricas provavelmente revela um ideal estético musical que os mestres somente podiam manter e controlar nas gravações de estúdio.
Gravações
Conceição, Ápio Patrocínio da (Camafeu de Oxossi). 1967. Berimbaus da Bahia. Musicolor, LPK-20.108 (LP).
Machado, Manoel dos Reis (Mestre Bimba). 1962. Curso de Capoeira Regional. RC-101 (LP).
Moraes, Antônio Conceição (Mestre Caiçara). 1969. Academia De Capoeira De Angola São Jorge Dos Irmãos Unidos Do Mestre Caiçara. AMC, AMCLP-5032 (LP).
Nascimento, José Ramos do (Mestre Traíra). 1963. Mestre Traíra: Capoeira da Bahia. Rio de Janeiro: Editora Xauã (LP).
Pastinha, Vicente Ferreira (Mestre Pastinha). 1969. Mestre Pastinha e Sua Academia: Capoeira Angola. Phillips R 765.097 L (LP).
Santos, Oswaldo Lisboa dos (Mestre Paraná). 1963. Capoeira: Mestre Paraná. CBS Masterworks 56126 (Compacto).
Juan Diego Díaz é professor da Universidade da Califórnia, Davis.