Lugares de Memória

Por Matthias Röhrig Assunção.

A memória da capoeira é onipresente na sua prática: ela está nos fundamentos, nas cantigas e na própria mandinga do corpo do capoeirista – o “arquivo-arma” como tão bem chamou Júlio Tavares. Mas a memória também tem seus espaços físicos ou geográficos. A capoeira é jogada na roda e a roda acontece em um lugar considerado propício. Os antigos capoeiras treinavam nas praias e nos morros urbanos, logo depois, no quintal dos professores e mestres. Hoje, os alunos treinam nas academias ou em espaços improvisados na rua. 

Essa geografia dos espaços da capoeira, desde as idas e vindas entre as moradias e lugares de trabalho de alunos e mestres, até os itinerários para lugares de treinos e das rodas, obedece a uma lógica espacial, distinta em cada localidade – vila, município, cidade ou metrópole, no Nordeste ou no Sudeste do Brasil, no Sul ou Norte global. Ainda mais fortemente, os locais das rodas de rua estão sujeitos às múltiplas pressões da sociedade, do mercado e das forças de segurança.

O Projeto Capoeira Contemporânea no Rio de Janeiro intenta mapear os espaços que foram importantes para a história da capoeira na cidade e seus subúrbios e periferias. Acreditamos que muitos lugares de memória da capoeira no Rio de Janeiro são ignorados, desrespeitados e mesmo destruídos. “Lugares de memória” na definição do historiador Pierra Nora, que cunhou esse conceito algum tempo atrás, tornam-se necessários quando já não existem os “ambientes da memória”. Ou seja, quando o espaço do passado se transformou a ponto de ser difícil vislumbrar esse passado a partir do mesmo espaço no presente. Lugares de memória podem, assim, ser espaços “onde a memória se cristaliza”.

Os lugares de memória oficiais dominam a geografia das cidades: enaltecem o general que ganhou batalhas na defesa da legalidade ou do regime vigente, mas raramente citam quantos soldados foram sacrificados para esse fim; homenageiam políticos que, na leitura oficial, se destacaram na administração e inauguraram obras; também reverenciam protetores abrindo os braços para proteger a cidade, principalmente em tempos de crise e epidemia. Assim, é comum os lugares de memória oficiais estarem carregados de nostalgia. Nostalgia de épocas, supostamente mais gloriosas que os dias atuais, e de líderes representados como heróis sem falhas em suas esculturas monumentais.

A capoeira, como era de se esperar, não é representada nos lugares de memória oficiais, apesar de ela ter frequentado a esses mesmos lugares, como, por exemplo, as igrejas e seus largos, que deram identidade territorial às maltas no tempo do Império. Ela esteve presente também nos cárceres antigos, onde capoeiras foram mantidos presos por capoeiragem, como o Aljube, a Ilha das Cobras e a Casa de Correção no Rio de Janeiro, hoje desativados ou desaparecidos.

Acreditamos que é importante documentar e refletir sobre esses lugares de memória alternativos da capoeira. Eles têm o potencial de se tornarem lugares de memória contra-hegemônicos. Não necessariamente lugares considerados bonitos “por natureza”, ou espetaculares por suas construções imponentes, mas lugares onde a capoeira aconteceu de alguma maneira, em uma de suas múltiplas manifestações. Lugares onde a energia da capoeira esteve presente.

Algumas mostras dessa geografia histórica dos lugares de memória e seu vínculo com fases específicas da história da capoeira, para lembrar das maltas do século XIX:

Casa de Correção

na atual rua Frei Caneca, torna-se, a partir de 1841, um ponto importante para a remessa de escravos fugitivos e capoeiras, porque as outras prisões da cidade, como o Aljube, na atual rua do Acre, e o Calabouço do Castelo foram desativadas nesse período (Soares, 2001, p. 404)

Igreja de Santa Rita

construção do século XVIII e matriz da freguesia do mesmo nome, foi a referência simbólica da malta conhecida como de “Três Cachos”. Essa malta dominava uma área que ia do Arsenal até a Praia do Valongo, na orla, e extendia-se por uma parte do centro. Depois essa malta passou a fazer parte dos Guaiamus, a federação de capoeiras que se opunha ao "partido" dos Nagoas, no Império.

Campo de Santana

hoje Praça da República, foi, durante a maior parte do Império, um campo descoberto no liminar da cidade. Como também representava o limite entre duas maltas de capoeira, virou um lugar de frequente confronto entre navalhistas. Muito sangue correu ali.

Outros lugares de memória importantes para a capoeira são o Arco do Teles, na praça hoje denominada Quinze de Novembro, ou simplesmente Praça XV, foi um lugar de refúgio para a população escravizada, onde é possível que a capoeira carioca tenha se originado..

Do tempo da malandragem da primeira metade do século XX, podemos destacar, além da Lapa, já muito referenciada, a Praça Onze e, no Largo da Carioca, o Tabuleiro da Baiana, onde havia encontros de batuqueiros que se divertiam com a pernada carioca.

Do tempo em que a capoeira carioca se reergueu das cinzas com a chegada dos capoeiras baianos, podemos destacar as rodas da Central, da Penha e da Quinta da Boa Vista. Finalmente, o Circo Voador, erguido inicialmente no Arpoador, e depois transferido para a Lapa, marcou a história da capoeira por conta do grande encontro nacional de 1984.

O CapoeiraHistory procura resgatar esses lugares no Rio de Janeiro e, nesse sentido, dialoga com capoeiristas e pesquisadores do Rio de Janeiro ou de outras localidades. Se você tem um trabalho sobre um lugar de memória de capoeira, entre em contato pelo email capoeirahistory arroba gmail.com.

Para saber mais:

Soares, Carlos Eugênio Líbano. A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro, 1808-1850. Campinas, SP, Ed. da UNICAMP, 2001.

Nora, Pierre: “Entre memória e história: a problemática dos lugares”, tradução de Yara Aun Khoury. História e Cultura, v. 10 (jul-dez 1993), 7-28.
Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/issue/view/851

Legendas e Créditos das fotos:

Antigo pórtico da Casa de Correção. Museu Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro, 2017. WikiCommons

Igreja de Santa Rita de Cássia. Por Enrique Lopez Tamayo Biosca, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=5887445

Campo de Santana e Obelisco. Por Edvaldorio. https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Obelisco_central.jpg