Augustus Earle: um artista global no Rio de Janeiro
Por Sarah Thomas.
Trecho adaptado do capítulo 6, do livro Witnessing Slavery: Art and Travel in the Age of Abolition, de Sarah Thomas, publicado em 2019, em Londres, pelo Paul Mellon Centre for Studies in British Art para a Yale University Press.
Acredita-se que Augustus Earle tenha sido o primeiro artista freelancer profissional a fazer uma turnê pelo mundo (Hackforth-Jones, p. 1). Hoje ele é tão conhecido na Austrália quanto no Brasil, no entanto, na Grã-Bretanha, seu país natal, seu nome mal é registrado. Filho de um retratista conservador americano, ele exibiu desde cedo um talento precoce para a pintura. Ele tinha apenas treze anos quando expôs pela primeira vez na prestigiada Royal Academy de Londres, onde se tornou expositor regular até o final das Guerras Napoleônicas em 1815, quando as viagens à Europa foram retomadas. Viajou extensivamente pelo Mediterrâneo e pelos Estados Unidos, antes de chegar ao Rio de Janeiro em 1820, aos 27 anos: onde se fixou e viajou pela América do Sul durante os quatro anos seguintes. Convidado para ir a Calcutá pelo governador-geral da Grã-Bretanha, Lord Amherst, a viagem de Earle foi interrompida quando o seu navio avariado o desembarcou em Tristão da Cunha, uma remota ilha vulcânica no mar do Atlântico Sul.
Isolado por oito meses, ele foi resgatado por um navio com destino à Austrália. Após vários anos produtivos lá e na Nova Zelândia, o espírito inquieto de Earle levou-o a trabalhar como desenhista na agora famosa viagem do Beagle, em 1831, durante a qual estabeleceu uma amizade estreita e construtiva com Charles Darwin. Tendo sofrido de problemas de saúde (“asma e debilidade”) durante muitos anos, Earle morreu sozinho em Londres, aos 46 anos.
Obra de Augustus Early, no acervo da Biblioteca Nacional da Austrália: Solidão, observar o horizonte, 1824, aquarela sobre papel.
Augustus Earle, Solitude – Tristan D’Acunha, – Watching the horizon, 1824, watercolour on paper; National Library of Australia (Rex Nan Kivell Collection NK12/3)
Durante a maior parte de suas andanças pelo mundo, Earle esteve em constante busca de assuntos novos e informativos para o mercado de arte britânico. Quando a necessidade financeira exigia, ele procurava encomendas de retratos de membros das aristocracias coloniais, principalmente as do Rio de Janeiro e de Sydney. O artista gregário e abastado era capaz de se misturar com os escalões superiores das sociedades coloniais e de obter o seu patrocínio, mas o seu temperamento e as exigências do mercado levaram-no a registar a vida quotidiana dos marginalizados: pessoas escravizadas e indígenas, condenados (transportados da Grã-Bretanha para a Austrália) e as classes trabalhadoras. Ele raramente retratava tais figuras em tinta a óleo, mas elas são uma característica proeminente de muitas de suas aquarelas. O olhar de Earle para a paródia e o humor o liga diretamente à tradição satírica britânica – exemplificada por artistas como Rowlandson, Gillray e Cruikshank – cujos desenhos e gravuras eram extremamente populares no período.
Negroes fighting, Brazils [Negros lutando, Brasis] c. 1822 é uma das cerca de vinte aquarelas brasileiras de Earle mantidas pela Biblioteca Nacional da Austrália. Nas primeiras décadas do século XIX, o Rio de Janeiro tinha a maior população urbana de pessoas escravizadas das Américas: em 1821 totalizavam cerca de 36.000, um número que mais do que duplicou desde a chegada da corte real portuguesa em 1808 (Karasch, p. 61-62). Os africanos escravizados passaram a dominar a cidade de uma forma sem precedentes e eram um aspecto onipresente e altamente visível da vida carioca, desempenhando uma ampla diversidade de trabalhos e engajando-se em muitas atividades sociais e religiosas. Earle era mais propenso a ridicularizar gentilmente seus colegas europeus do que os escravizados que via no Brasil.
Em Negros lutando (Negroes fighting), os combatentes negros têm uma fisicalidade robusta que contrasta marcadamente com o esquelético policial europeu que mal consegue passar por cima de uma cerca baixa de madeira para alcançá-los. Os dois lutadores jogam capoeira, com as mãos estendidas e os olhos fixos, os membros graciosos e equilibrados: o poder da sua performance é sugerido pela postura recuada do espectador sentado, enquanto outros escravizados, testemunhas do jogo, são igualmente arrebatados pelo espetáculo. O fato de duas das testemunhas serem uma mãe e um filho tranquilos parece sugerir que o evento é mais um entretenimento divertido do que uma ameaça à ordem pública.
No entanto, como morador do Rio de Janeiro, Earle certamente estava ciente de que neste período a capoeira era alvo das autoridades policiais como uma forma de comportamento anti-social – juntamente com conduta desordeira, vadiagem e embriaguez em público. (Assunção 2003, p. 165). Como o quadro sugere, os capoeiras eram amplamente reverenciados pelos escravos, mas suas excelentes habilidades de luta, agilidade física e alto nível de organização não os tornaram muito queridos pela polícia: suspeitava-se que estavam envolvidos em conspirações de insurreição e eram vigiados de perto. Embora as autoridades fossem em grande parte ineficazes no policiamento destas reuniões, a existência de tais tensões confere à aquarela de Earle um subtexto algo mais sombrio (Karasch, p. 243). Fiel à sua forma, Earle se deleita em satirizar a disparidade física entre o símbolo insignificante da autoridade e os musculosos objetos de sua vigilância. Ele enfatiza os elementos estilizados da capoeira mais do que o seu potencial letal, assim, de certa forma, tranquilizando o espectador europeu de que a lei e a ordem prevaleciam em todos os níveis da sociedade carioca.
Uma comparação desta aquarela com uma gravura um pouco anterior de outro artista itinerante que trabalha em outro lugar a serviço do império é instrutiva: A Cudgelling Match between English and French Negroes in the Island of Dominica (Uma luta de pauentre negros ingleses e franceses na ilha de Dominica), de 1779, de Agostino Brunias.
Uma partida violenta entre negros ingleses e franceses na ilha de Dominica, de Agostino Brunia. gravura e água-forte, colorida à mão, sobre papel. A Cudgelling Match between English and French Negroes in the Island of Dominica, 1779, engraving and etching, hand-coloured, on paper, Yale Center for British Art, Paul Mellon Collection B1981.25.1957.
Nos dois casos, homens musculosos escravizados são colocados um contra o outro, um com o peito nu e o outro não, envolvidos numa forma de combate recreativo perante um público maioritariamente escravizado. As composições são muito semelhantes, ambas tendo como cenário uma habitação doméstica e vegetação tropical. No entanto, enquanto Brunias cria uma competição neo-clássica estilizada na sua cena caribenha, com corpos de proporções clássicas suntuosamente envoltos em drapeados, Earle faz questão de lembrar aos seus espectadores que estava a registar um acontecimento específico testemunhado. Suas figuras são bem menos coreografadas e a instabilidade momentânea da figura sentada comunica a ideia de um momento congelado no tempo. Curiosamente, ambas as imagens contêm testemunhas europeias solitárias: no entanto, enquanto a de Brunias observa da porta da frente da cabana, descansando com curiosidade casual, vimos que o policial satirizado por Earle está prestes a fazer uma tentativa desajeitada de pôr ordem nos combatentes. Na imagem caribenha, a “luta” com bastões é demonstrada como nada mais do que um jogo elegante, que não justifica quaisquer medidas de controle social. Brunias retrata uma visão fictícia de harmonia racial, social e política, com a alusão da gravura a um conflito mais vasto, pondo em cena nações europeias rivais e não qualquer conflito entre senhor e escravo (ou entre os próprios escravizados). Apesar de sua relativa crueza, os súditos escravizados de Earle são muito mais convincentes como indivíduos, e a aparência do infeliz policial, por mais cômica que seja, alude diretamente às tensões entre os administradores imperiais da cidade e sua maioria escravizada.
Lei e ordem surgem como elementos de outra aquarela do artista do mesmo período, ainda que de forma mais sutil.
Cena de fandango negro mostra uma multidão entusiasmada de escravos dançando, tocando tambores, batendo palmas e cantando.
O cenário foi o Campo de Santana, onde outro artista contemporâneo, o francês Jean-Baptist Debret, retratou os escravizados sendo açoitados publicamente. No entanto, Earle volta sua atenção não para o espetáculo da punição, mas para a folia descarada. Em 1808 um comerciante britânico descreveu o Campo de Santana assim:
teatro de folia e algazarra. Aqui estava o natural de Moçambique, e Quilumana, de Cabinda, Luanda, Benguela e Angola. […] Você pode ver as bochechas de um atleta de Angola prestes a arrebentar sob o esforço de produzir um som horrível de uma cabaça, enquanto outro artista desferia golpes tão grossos e pesados em seu tímpano, que apenas a natureza impermeável da pele de um boi poderia resistir a eles. […] cada espectador participava do espírito sibilino que animava os dançarinos e músicos; o céu ressoou com o entusiasmo selvagem dos clãs negros.” (Robertson, p. 166-67)
Na pintura de Earle, os braços levantados de um dançarino central podem de fato sugerir a influência do fandango ibérico, de acordo com o título da obra, embora seja mais provável que a dança fosse o batuque, precursor do samba moderno, amplamente praticado pelos escravizados no Brasil a partir do século XVII. Os estudiosos destacaram o extraordinário hibridismo transcultural dessas danças afro-brasileiras, especialmente se considerarmos as influências moura e cigana originais no fandango. (Chasteen, p. 33-35).
A sexualidade explícita de tais danças não era o único aspecto que perturbava os espectadores europeus: o mesmo acontecia com o sentimento de rebelião que tais reuniões representavam. Desde pelo menos 1817, as autoridades da cidade começaram a restringir a grande congregação de escravos, pois eram vistos como perturbadores da ordem pública, e na época em que Earle morava no Rio de Janeiro, dançarinos de batuque eram frequentemente presos. (Assunção 2005, p. 40 e 75-90). Os receios metropolitanos e rurais de insurreição estão por detrás da crescente restrição de tais reuniões, particularmente após o triunfo de 1804 dos escravizados do Haiti. Não é de admirar, pois, que o artista tenha incluído, quase à vista, no extremo direito, a figura tranquilizadora de um soldado que supervisiona as festividades, com a sua longa espada bem visível. Ao reconhecer que era necessário neutralizar pictoricamente a ameaça potencial contida na sua imagem, Earle também incluiu uma mulher europeia desacompanhada e o seu filho pequeno. Tais figuras funcionam como marcadores de coesão social, símbolos reconhecíveis de uma sociedade multirracial aparentemente harmoniosa, cujas hierarquias naturais não estão sob ameaça. A presença do soldado é um lembrete sutil de que o que parecem ser cenas de alegria comunitária descarada são, na verdade, sustentadas por uma vigilância ansiosa. Earle nos lembra dos fundamentos coercitivos e violentos da escravidão. Sua tendência de preencher suas composições com uma série de detalhes que poderiam ser considerados estranhos não era apenas um sinal de diligência empírica, mas também um meio de persuadir os espectadores de sua autoridade como testemunha ocular.
Dra. Sarah Thomas é professora (Senior Lecturer) na Escola de Estudos Históricos da Birkbeck College, Universidade de Londres. O seu livro, Witnessing Slavery: Art and Travel in the Age of Abolition, foi publicado em 2019 pelo Paul Mellon Centre for Studies in British Art. Tem publicado amplamente sobre escravatura e cultura visual e sobre a história da arte e a museologia do império britânico. Está concluindo um novo livro intitulado Chattel: Art, Slavery and the British Collector, 1768-1833.
Outras referências:
Assunção, Matthias Röhrig. Capoeira: A History of an Afro-Brazilian Martial Art (London: Routledge, 2005).
Assunção, Matthias Röhrig. ‘From Slave to Popular Culture: The Formation of Afro-Brazilian Art Forms in Nineteenth-Century Bahia and Rio de Janeiro’, Iberoamericana, Nueva época, vol. 3, No. 12 (Dec 2003), pp. 159-176.
Chasteen, J.C. ‘The Prehistory of Samba: Carnival Dancing in Rio De Janeiro, 1840-1917, Journal of Latin American Studies 28, no. 1 (1996).
Hackforth-Jones, Jocelyn. Augustus Earle: Travel Artist (National Library of Australia, 1980).
Karasch, Mary C. Slave Life in Rio de Janeiro, 1808–1850 (Princeton: Princeton University Press, 1987).
Robertson, John and William Parish. Letters on Paraguay, 3 vols. (London: John Murray, 1839, 2nd edtion).