Por Carlos Eugênio Líbano Soares.
O partido da ordem e a desordem: os capoeiras e a luta política na corte imperial do Rio de Janeiro 1870-1890
A participação dos chamados capoeiras (praticantes da arte marcial conhecida hoje como capoeira) nas lides políticas do Segundo Reinado (1840-1889) era algo notório e comentado pelos articulistas de política na época dos eventos. A partir do século XX, a visão consagrada sobre a capoeira sofreu profunda modificação e estes eventos caíram no esquecimento. Em trabalho recente já havíamos comentado em primeira mão estes episódios (Negregada Instituição, 1999). Mas não tivemos oportunidade de fazer interpretações deste processo, que iluminassem questões ligadas à escravidão e à sociedade urbana do final do século XIX.
A relação entre os partidos políticos e as maltas de capoeiras foi largamente explorada pela imprensa da época.
Em fevereiro de 1873, na charge da Revista Fluminense, Duque-Estrada Teixeira é aclamado por sua malta de navalha em punho.
Capoeira Crioula e Capoeira Escrava
Um dos processos culturais mais importantes daquela conjuntura foi a emergência do que denominamos Capoeira Crioula. Até cerca de 1850, a capoeira era uma prática cultural exercida por escravos e principalmente africanos. A condição africana era ainda mais importante que a condição escrava, norteada pela presença forte de libertos e livres oriundos das “nações” africanas. As “maltas” (como eram chamados os grupos de capoeiras) lutavam entre si pelo domínio de territórios urbanos, em menor sentido, lutando contra as forças policiais e, menos ainda (quase inexistente), confrontando senhores. Podemos dizer que a Capoeira Escrava, como denominamos, se movia dentro da lógica da escravidão urbana colonial, conformando uma leitura específica (escrava e africana) da rede citadina.
Estes escravos africanos da 1ª metade do século XIX estavam imersos em uma realidade complexa, que mediava seus ganhos dentro da sociedade monetizada da Corte Real e Imperial pelo controle do espaço mais importante do mercado de consumo da época: a rua. Ao controlarem determinado pedaço do tecido urbano, controlavam quem eram os escravos que poderiam tirar dividendos daquele trecho da cidade e os que eram, na prática, proibidos. Estes conflitos ocorriam de dia, quando uma multidão de escravos tomava as ruas, perturbando o olhar vigilante da ordem policial criada por D. João VI. De noite, quando as sombras tomavam conta da cidade mal iluminada, as “maltas” entravam em confronto, disputando no sangue o domínio simbólico de partes da capital. Não era à toa que os visitantes eram orientados a não frequentar as noites cariocas, e até membros das forças militares, mesmo em grupo, recusavam patrulhar certas partes da cidade.
A formação das maltas
As fronteiras étnicas pouco importavam na delimitação dos grupos. As “maltas” eram definidas pelo local de trabalho e moradia, sabendo que muitos escravos residiam longe de seus senhores. Mas uma “nação” se destacava: os Cabinda, embarcados na franja norte da boca do rio Zaire, e que portavam marcas étnicas específicas, diferentes de Angola e Benguela.
A Capoeira Escrava não desafiava diretamente a escravidão – como podia ocorrer com os quilombos – mas os conflitos desencadeados com a ordem policial, acabavam dando um caráter de espaço de desafio ao Estado joanino. Não sem motivo o castigo aos escravos presos em capoeira no Calabouço da ponta de Santiago era o mais severo: 300 chibatadas (500 chibatadas correspondia na prática a uma pena de morte). Mas, quanto à ordem senhorial, a Capoeira Escrava muito raras vezes representou alguma ameaça.
O colapso do tráfico atlântico de escravos da África significou o final rápido do substrato cultural da Capoeira Escrava. Os melhores africanos da cidade foram tragados em poucos anos para as fazendas de café, e o escopo da escravidão urbana do Rio, que tinham assustado os vistantes estrangeiros, era reduzido a uma sombra. É neste contexto que emerge a Capoeira Crioula. Ao contrário do que falava a Escola Paulista de Sociologia, os escravos africanos conseguiram, dentro do cativeiro, forjar instituições vigorosas, que influenciaram profundamente os livres que ocuparam os espaços de trabalho deixados pelo cativeiro urbano.
A partir de 1850 vemos a emergência dos Crioulos, filhos de escravos africanos, nascidos na terra, falantes de português de nascença, crentes na denominação católica – o que não evita transitarem pelos ritos africanos. Eram versáteis, liminares, fronteiriços, como afirmou Gilberto Freyre em Sobrados e Mocambos, para os pardos, e capazes de se infiltrar nas linhagens brancas por meio do compadrio e da clientela. Estes crioulos podiam ser escravos ou livres, mas eram os livres e libertos que guardavam maior envergadura para usar a capoeira como arma de afirmação política. Eles não tinham senhores para marcá-los na paisagem urbana frente aos olhares policiais, não podiam ser estigmatizados como estrangeiros – o que ocorria frequentemente com os africanos – e também muitas vezes escapavam dos estigmas raciais, pela ascensão econômica.
Na realidade, na virada dos anos 1850 para os anos 1860, a capoeira escrava praticamente desaparece e os crioulos, livres e libertos, e brancos pobres, brasileiros e estrangeiros, se tornam os senhores das maltas. A crônica policial dos jornais registrou esta mudança quase imperceptivelmente, mas observamos também que estes crioulos eram mais difíceis de serem apanhados nas redes policiais que os cativos africanos. A herança da cultura escrava urbana seduzia livres de todas as classes e cores.
Foi preciso um fator externo para que a versatilidade da Capoeira Crioula transitasse para o palco da política de elite. Em dezembro de 1864, tropas do Paraguai sequestram o vapor Visconde de Olinda, onde viajava o presidente da província do Mato Grosso. Era o começo da Guerra do Paraguai – que no Paraguai é a Guerra do Brasil. Como natural nestes tempos, a formação de um exército para conflitos externos demandava uma caçada a “voluntários”. Os crioulos (que geralmente eram pretos) eram o prato principal: nacionais, livres (escravos não podiam assentar praça na tropa), jovens, enredados na marginalidade urbana em grande maioria, pouco ligados aos elos do clientelismo e do paternalismo dominantes na escravidão, eles foram perseguidos e jogados nas celas, onde eram recrutados para as fileiras das forças armadas.
A Guerra do Paraguai foi um divisor de águas da história militar do país. Até então as forças de segurança interna eram as mais requisitadas pelos governos parlamentares. Os poucos conflitos externos do século XIX não chegavam a causar comoção na Corte. Agora era diferente. O Brasil fora o agredido. Um dos elementos mais importante da identidade crioula era a afirmação dos valores da terra, em contraste com africanos estrangeiros ou brancos de elite burguesa europeizada.
A guerra foi uma oportunidade perfeita. O fim da guerra traz um exército revitalizado, fortalecido em sua disputa com a Guarda Nacional, preenchido em seus quadros de suboficialidade com elementos de baixa classe média, que desde muito largara para trás a escravidão. A participação na tropa faz, dos ex-marginais, heróis do dia. A própria literatura – termômetro da visão da elite letrada, vide Antônio Cândido – muda sua percepção: de marginal perigoso, iletrado, racialmente indesejado, depravado pela miscigenação, o “caboclo”, o crioulo, o pardo, o mestiço, o fula, o cabra, passa a ser retiro da nacionalidade, marca de brasilidade, essência da raiz pátria.
Ao mesmo tempo, a parcela da elite que partilhou os campos de batalha, cultiva laços de camaradagem com os companheiros de armas: não são mais negros degenerados, são ex-combatentes, heróis da pátria. Os laços forjados na luta raramente se rompem. E este exército agora mudou para sempre.
Mais uma charge da imprensa carioca da época sobre as relações entre políticos e maltas de capoeiras.
Em janeiro de 1878, a revista O Mequetrefe traz o político do partido conservador, Duque-Estrada Teixeira, em plena negociação com a malta “Flor da minha gente”.
Capoeira como partido
A política no Segundo Reinado tradicionalmente tem sido vista como palco exclusivo da elite senhorial (José Murilo de Carvalho, 1996). O voto censitário, o parlamentarismo e a conciliação são lidos como instrumentos perfeitos para eternização do poder econômico. A oligarquização da alta política deita raízes muito anteriores à República. Mas esta visão ignora o profundo processo de politização da sociedade brasileira nas duas últimas décadas da monarquia. A expansão da imprensa, o crescimento da classe média urbana, as relações com a Europa, a crise da mentalidade escravocrata, a emergência da ideologia socialista, entre outros fatores, acentuam o processo de politização das classes.
Estes crioulos egressos da capoeira e de regresso da guerra não podiam ser alheios ao processo mais amplo. Eles se adaptam a alta política das elites, conformando a micropolítica das ruas. Aqueles que voltam encontram um panorama alterado: novos chefes, novos personagens, novos territórios. A dominação do mercado de trabalho (o imigrante) parece mais importante que o mercado de venda (a rua). A categoria escravo de ganho se torna decadente, ultrapassada, e a cidade fica coalhada de lojas de produtos para atender os milhares de imigrantes (vindos do estrangeiro mas também vindos do interior do império).
A nova mercadoria tem nome: o voto. Como as milícias da modernidade, os capoeiras de 150 anos atrás percebem que tem de transitar por novos corredores de poder para assegurarem seu retorno ao controle. As novas elites políticas também mudam. O discurso contra a escravidão perde seu caráter subversivo e passa a ter apoio na opinião pública. Chega mesmo a haver uma facção do Partido Conservador que declara que a questão da escravidão (a questão servil) tem de ser equacionada pelo fim da instituição, se bem que de forma lenta, gradual e segura, enquanto outra parte assegura apoio à permanência do cativeiro.
Este discurso emancipacionista, mesmo que a curto prazo não resulte em mudanças, teve impacto ideológico claro. A derrocada da escravidão nos EUA que levou a uma guerra civil era uma tragédia difícil de ser apagada. E setores da população negra sentiam claramente que esta bandeira era um atrativo. A própria família imperial usava o incomodo com a escravidão como um ativo contrafatual, fazendo a imagem do soberano Pedro II se distanciar dos políticos fazendeiros que dominavam o parlamento.
Isto não significa que não houvesse homens livres praticantes de capoeira arregimentados nas milícias que combatiam a campanha da abolição. Mas ambos – pró e contra – eram aliados dos Conservadores nas duas facções em que se dividia o Partido. A obra de Ilmar Rohlof de Mattos moldou uma visão consagrada da elite do partido (O tempo saquarema…, 1999). Esta elite não apenas definia a rota seguida pela agremiação, mas influenciou toda vida politica do país, até os republicanos. Era natural que o Partido sentisse os ventos dos novos tempos após as duas guerras que dilaceram a América entre 1861 e 1870.
Os capoeiras do Partido Conservador seguiam a parceria forjada nos campos de batalha. De forma similar, a Segunda Guerra Mundial iria politizar a oficialidade brasileira de um tal modo que em apenas vinte anos após a guerra eles tomavam o poder e desmantelavam todo o edifício constitucional e institucional erigido pela democracia de 46.
A parceria seguia a mesma forma do campo de batalha: pela violência. O Partido que assumiu a alcunha de Partido da Ordem era acusado pela opinião pública e a imprensa em geral de proteger a desordem para garantir seus ganhos eleitorais. O voto aberto – que seria eliminado pela reforma eleitoral apenas em 1934 – era o campo perfeito para as manobras abusivas perpetradas pelos donos do poder. Claro está que a corrupção fazia parte da negociata. A partir da capangagem explícita contra eleitores liberais, as maltas ganhavam o passaporte para a impunidade em seu domínio territorial. Era o início de uma aliança do crime organizado com o poder político, algo ainda crônico no panorama carioca.
O líder inicial no Partido Conservador era um personagem clássico da fauna política. Duque -Estrada Teixeira pertencia a uma família tradicional da política, oligarquia costumeira do cenário carioca, mas ao mesmo tempo era dado a arroubos populistas, como aprender a “nobre arte” em recintos da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo. No país dos bacharéis ele fez rápida carreira política, mas seria em 1872 que o palco seria montado. Dirigindo pessoalmente a malta da freguesia da Glória, a célebre Flor da Gente, se tornou lenda na paisagem política carioca, defendendo abertamente seus “capangas”.
A instrumentalização de homens das “classes baixas” como força de combate clandestina não era novidade. No meio rural era a norma. A novidade era o recrutamento de homens livres em área urbana fora das redes de clientela tradicionais, como a família patriarcal, e para atuar exclusivamente nas disputas eleitorais. Este capangismo urbano era bem diferente do rural porque estes indivíduos tinham interesses políticos que eram levados em conta pelos donos do poder, como a questão da escravidão e a popularidade da monarquia.
Carlos Eugênio Líbano Soares é graduado em História da UFRJ, com mestrado e doutorado na UNICAMP/SP.
Bibliografia
Carlos Eugênio Líbano Soares. Negregada Instituição: os capoeiras na Corte Imperial 1850-1890. Rio de Janeiro, Access, 1999.
José Murilo de Carvalho. A Construção da Ordem-Teatro de Sombras. Rio de Janeiro. Relume Dumará-UFRJ, 1996.
Ilmar Rohlof de Mattos. O tempo saquarema: a formação do Estado Imperial. Rio de Janeiro, Access, 1999, 3a edição.
Capoeira e Política. Maltas. Capoeira crioula e capoeira escrava.
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