Contrariamente a muitos mestres de sua geração, Daniel Coutinho, mais conhecido como Mestre Noronha, sabia ler e escrever. Assim foi possível ele deixar esse legado precioso constituído por seus manuscritos, publicados pela primeira vez em 1993 por Fred Abreu. Junto com os manuscritos de Mestre Pastinha, o texto de Noronha representa uma fonte de suma importância para a história da capoeira do século XX, pois existem pouquíssimos depoimentos que nos providenciam uma visão de dentro da capoeira baiana, antes das inovações e mudanças que aconteceram a partir da década de 1930. Redigidos ao longo dos anos 1974-77, Noronha não somente lembra a “baderna”, como ele chamava a capoeira de sua juventude, como também reflete sobre a evolução da capoeira desde então.
De seus manuscritos depreende-se que a escrita não fluía facilmente para ele, e que ele escrevia tudo em maiúsculas. M Noronha tampouco usava pontuação. Seu texto também reflete a ortografia antiga, que ele aprendeu na escola (por exemplo, escreve “elle” em vez de “ele”), e a pronúncia regional baiana (usando “panha” por “apanha”). , A tentativa de transpor sua fala diretamente para a escrita, geralmente resulta em certa dificuldade para o leitor, por isso, optamos por fazer ajustes gramaticais e por acrescentar termos em lacuna (estes, inseridos entre colchetes), a fim de favorecer o entendimento do texto, da mesma forma, a ortografia foi atualizada. Apresentamos sempre as imagens dos originais para cotejo.
Reproduzimos aqui alguns trechos de seu caderno manuscrito original, extraído do original publicado em 1993 por Fred Abreu, e uma transcrição com ortografia atualizada para melhor leitura.
1.Autobiografia
Sou baiano, nascido na Baixa do Sapateiro em agosto de 1909. Fui educado, sei ler e escrever. Me dediquei a aprender a capoeira com a idade de 8 anos com um grande mestre, Cândido Pequeno, que tinha uma argolinha na orelha. Como campeão [de capoeira] no Estado da Bahia este grande mestre foi quem me lecionou a capoeira angola com toda dedicação. Esta é a origem a que procurei adaptar todas as maldades que existem na capoeira, golpe de vista e destreza, nos meios bons, ruins e maus, para poder conhecer quem são eles. O jogador de capoeira não é valente nem deve ser, porque o capoeirista tem muito recurso para brigar. [Deve] ter muita calma. O capoeirista deve ser muito educado para ser apresentado nos altos meios sociais. Se foi valente deixe esta vida, que já si passou de lado valentia. Devemos adquirir lastro de amizade, é o que devemos fazer. (p. 38)
2. Autobiografia
Fui engraxate para poder viver. A minha vida como mestre de capoeira angola foi muito boa, porém não adquiri nada na vida. Lecionei e nada tenho. Fui trabalhar na estiva, abandonei. Fui ser doqueiro, fui trapicheiro, andei embarcado, fui ajudante de caminhão, carregador do canto. Trabalhei no petróleo, sou consertador de carga, estou aposentado pelo meu sindicato. Tenho 65 anos, nunca desprezei meu mandato de mestre, sempre firme na luta, porque tenho amor à minha pátria.
Senhores professores de academia, para lecionar a capoeira angola em uma academia é preciso ter muito saber do fundamento dela, senão seu aluno não sabe nada. Não pode se apresentar perante seus colegas de profissão. É o que tenho a dizer.
Mestre Noronha, Bahia. (p. 34)
3. Origem da capoeira
Tem muito mestre de capoeira que não sabe dar o [seu] valor que ela tem, porque são mestres que aprenderam com um mês. Este mestre nada sabe, nem ele nem quem [o] ensinou, porque são mestres que aprenderam com 1 mês. Não podem ser mestres de uma academia. Os mestres da Bahia ainda existem, que conhecem o fundamento da capoeira angola, porém não darão seus segredos a ninguém, porque é nosso privilégio. A capoeira veio da África trazida pelo africano. Todos nós sabemos disso, porém não era educada. Quem educou ela fomos nós baianos, para sua defesa pessoal. (p. 18-19)
4. Festa do Largo
Outra tradicional festa, de Nossa Senhora Santa Bárbara, de 1 a 4 de dezembro. Santa Bárbara, a padroeira do mercado tradicional da Baixa do Sapateiro, onde era a reunião dos grandes mestres de capoeira para disputar seus golpes de alta atração de sua defesa, para o público dar o seu valor como capoeirista que vem alimentando esta tradição de todas as festas da Bahia. Este mesmo conjunto de Conceição da Praia. Noronha, Bahia. (p. 20)
5. Roda da Curva Grande, 1917
Em 1917 fomos convidados para uma roda de capoeira na Curva Grande. Roda de capoeira que só tinha gente bamba, todos eles estavam combinados para nós escuraçar junto com a própria polícia. A roda de capoeira era de um sargento da Polícia Militar. Surgiu uma forte discussão, o sargento sacou uma arma de fogo, que foi tomada da mão do sargento pelo capoeirista que tem o apelido Júlio Cabeça de Leitoa, um grande desordeiro. Houve um tiroteio grande, parecia uma praça de guerra. Houve intervenção da cavalaria, foi um cacete desdobrado, tanto da parte da polícia, como dos capoeiristas. Fizeram de nós capoeirista barata no terreiro de galinhas, mas foi engano. Estou relembrando os tempos passados na Curva Grande defronte ao Vale da Bisca. Mestre Noronha. (p. 30)
6. Regras de competição da capoeira angola
Considera-se derrotado o capoeirista que for puxado por uma rasteira em uma demonstração, ou [levar]um rabo de arraia, ou uma joelhada, ou um balão boca de calça, ou um escoramento de coxa. O adversário considera-se vencido se na contingência de reconhecer sua derrota imediatamente fora da demonstração. São estas [as] regras da capoeira angola. O ringue de combate é [de] 4 metros por 4. Haverá um juiz da capoeira angola para julgar o jogador de angola que for superior em ataque. 2º ponto: o jogador de angola que for superior nos seus golpes ou [no] jogo de perna derrubar seu adversário, caindo este sobre o chão do ringue. 3º ponto: finalizando a demonstração, o juiz dará a vitória ao vencedor desta demonstração.
Mestre Noronha, conhecido nas rodas de capoeira no Estado da Bahia. Meu nome de batismo é Daniel Coutinho, nascido a 3 de agosto de 1909, no Beco do Girassol, Baixa do Sapateiro, Rua Dr. J. J. Seabra. (p. 40)
7. Origem do Centro Esportivo de Capoeira Angola-CECA
[N]este livro está escrito algum fundamento da capoeira angola do Estado da Bahia. Primeiro centro de capoeira angola do Estado da Bahia, na Ladeira de Pedra, bairro da Liberdade, fundado por grandes mestres Daniel Coutinho – Noronha, Livino, Maré, Amorzinho, Raimundo ABR, Percílio, Geraldo Chapeleiro, Juvenal Engraxate, Geraldo Pé de Abelha, Zehi, Feliciano Bigode de Seda, Bonome, Henrique, Cara Queimada, Onça Preta, Cimento, Algemiro Grande, Olho de Pombo Estivador, Antonio Galindeu, Antonio Boca de Porco Estivador, Candido Pequeno Argolinha de Ouro campeão baiano, Lúcio Pequeno, Paquete do Cabula. Depois ABR apresentou o Mestre Pastinha. Por motivo da morte de Amorzinho Guarda entregamos o Centro ao Mestre Pastinha para tomar conta. [e cujo] O Centro é registrado como os esforços do Mestre Pastinha, que soube levar este Centro a frente, graças ao Bom Deus, deste Espírito de Luz que orientou a Mestre Pastinha [e] ao Ministro da Educação, que procurou concentrar nos educatórios [educandários] do Brasil a capoeira. Porque é defesa pessoal e esta e não outra e assim eu digo: Mestre Noronha vem nesta baderna desde a idade de 8 anos, nos meios de bons, ruins e maus, por isso procurei saber o fundamento deste esporte que era tão odiado pelo governador, como [pel]a polícia. Fui muito perseguido pela polícia. Mestre Noronha, Bahia. Mestre Livino Malvadeza. (p. 17)
8. Entrevista
Eu, Mestre Noronha, tive o maior prazer de ter uma entrevistra com o professor da Universidade do Brasil, aqui no Estado da Bahia, sobre uns pontos da capoeira angola. Dei alguns pontos a ele, [que] ficou muito satisfeito com a minha entrevista. O professor veio à Bahia para adaptar alguns golpes da capoeira angola e fazer uma filmagem sobre a capoeira no Estado da Bahia. Nos convidou para fazer a filmagem, porém não pôde ser uma filmagem da capoeira angola [porque] necessita de muitos jogadores para serem extraídas na filmagem, para sair certo, para o mundo ver e gostar e dizer [que] este esporte está no alto meio social, na polícia, exército e marinha e praticado em ginásios, colégios e meios populares, este grande esporte malicioso. (p. 47-48)
9. Toques
Os toques que são necessários na capoeira angola:
Jogo de Dentro, jogo de grande observacão;
São Bento Grande, jogo de armação de golpe;
São Bento Pequeno, para desfazer este golpe;
Quebra-me com Gente, Macaco, jogo para balão de boca de calça;
Samba de Angola, jogo para rasteira e joelhada;
Apanha Laranja no Chão, Tico-Tico! jogo baixo e alto;
Este Negro é o Cão, jogo violento, dar e receber. (p. 48)
Para saber mais:
COUTINHO, Daniel. O ABC da Capoeira Angola. Os manuscritos do Mestre Noronha. Com explicações, notas, glossário e anexos de Frederico Abreu. Brasília: DEFER/GDF, 1993.
ASSUNÇÃO, Matthias Röhrig. ‘Uma visão de dentro da vadiação baiana. Os manuscritos do Mestre Noronha e o seu significado para a história da capoeira’. Revista África(s), Núcleo de Estudos Africanos e da Pós-Graduação Lato Sensu em Estudos Africanos e Representações da África, da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Campus II, Alagoinhas, v.1, n.2 (Jul-Dec 2015): 81-100.
PIRES, Antonio Liberac Cardoso Simões. A capoeira na Bahia de Todos os Santos. 1. ed. Goiânia: Editora UFT/Grafsete, 2005.
Também encontrei a versão fotocopiada(diferente da minha, que está bem melhor), mas bem rapidinho na internet:
https://vdoc.pub/download/o-abc-da-capoeira-angola-os-manuscritos-do-mestre-noronha-2k61dpt5dch0
Vocês teriam o pdf completo desta obra fundamental? Só consigo encontrar 13 páginas online… Axé, Alladin
Não, só o livro mesmo. Aconselho você procurar um biblioteca pública ou universitária perto de onde você mora.
Eu digitalizei todo o livro e posso mandar para depositar neste servidor