Por Mariana P. Candido.
Por uma história atlântica que problematize o colonialismo
Benguela, também conhecida como Ombaka em umbundu, é a capital da província homônima em Angola. Em 2014, a população da cidade foi estimada em mais de 2 milhões de residentes. Insistir que a cidade foi fundada em 1617 por um conquistador português é negar que o litoral era a terra dos mundombes, povos pastores que ocupavam a baía, conhecida como Baía das Vacas, justamente pela atividade caraterística dos seus primeiros ocupantes. Os mundombes estavam organizados politicamente em diferentes chefaturas caraterizadas pela mobilidade geográfica das populações transumantes. Ou seja, quando o Manuel Cerveira Pereira desembarcou com seus 130 soldados no litoral, o território estava sob poder político do Peringue, um dos chefes mundombes. Segundo seu relato:
Aqui cheguei com 130 homens alguns dos quais troquei em Angola e os demais dos que trouxe desse Reino [em referência a Portugal]. Vim com tão pouca gente por me fugirem alguns (…) e aqui me morreram 38 homens, (…) [a maioria] os velhos de Angola [em referência a Luanda] por serem costumados com aquele clima que é mais cálido que esta terra, aqui [Benguela] fria como Portugal.”
Cerveira Pereira descreveu Benguela como terra próspera, com clima propício para a agricultura e livre de mosquitos. Apesar da satisfação inicial com o clima, meses depois relatava a perda de sua tropa. “Em seu tempo e assim foram definhando de maneira que morreram. Em que entrou um irmão meu, um cunhado e um sobrinho e fiquei com 92 homens que entram 6 casados com mulheres e filhos, e 80 negros de guerra em que entram 60 meus cativos.” Ou seja, as forças de ocupação de Benguela incluíam mais de 60 pessoas escravizadas, cativos pessoais do conquistador português.
Segundo Cerveira Pereira, “ao desembarcar acudiu o gentio com intenção de nos estorvar mas não lhe valeu seu intento.” Como esse relato deixa claro, Peringue e sua gente não aceitou passivamente a chegada das forças portuguesas e resistiu. A estratégia inicial foi se afastar do litoral, provavelmente para evitar um conflito armado.
Os conquistadores portugueses nomearam o litoral Baía das Vacas, frente ao grande número de cabeças de gado que encontraram ali e, erroneamente, interpretaram a retirada estratégica de Peringue como derrota militar. Nas semanas e meses seguintes, as tropas de Cerveira Pereira atacaram aldeias vizinhas e descreveram seus ataques como guerra de conquista. No processo, mundombe e outros grupos foram sequestrados, escravizados e enviados para Luanda, a capital da colônia portuguesa de Angola. Cerveira Pereira declarou ter capturado “uma negra,” que informou o nome do seu líder político, “a que chama Peringue, e que esse com toda a sua gente das povoações havia passado para [a terra do] Senhor da Bahia de São Francisco, [localizado a] nove léguas desta cidade.”
Manuel Cerveria Pereira, em 1618, apenas um ano após a sua chegada, informava ao Rei de Portugal que havia enviado navios a Luanda carregado de peças, ou seja, seres humanos escravizados, para comprar provisões e mantimentos para os soldados. Assim, a escravidão, a venda e a deportação eram intrínsecas à presença portuguesa em Benguela. A chegada dos portugueses representou o deslocamento dos mundombes, o seu reassentamento em regiões vizinhas e a consolidação das incursões dos portuguesas, as chamadas guerras de conquista, como mecanismo para aterrorizar a população local.
A captura e o comércio de seres humanos expandiu-se durante o século XVII. Os mundombes escravizados, homens, mulheres e crianças, foram inicilamente enviados para Havana, Cartagena ou Lima. Historiadores encontraram evidência da presença de cativos identidicados como “Benguelas,” ou “Ganguelas,” em lugares distintos, como Buenos Aires ou Havana.1 Esses cativos trabalharam nos centros urbanos coloniais, fazendo todo o tipo de serviço necessário, assim como nas minas de prata e ouro ou no cultivo de produtos agrícolas.
Durante o século XVIII, a expansão do colonialismo no Brasil, incluindo a demanda por mão de obra nas minas de ouro e diamantes em Minas Gerais, assim como nas plantações de cana-de-açúcar em Pernambuco, Salvador e Rio de Janeiro, favoreceu a expansão do comércio de escravos no Atlântico Sul. Para atender a esta demanda, os oficiais portugueses participavam diretamente na expansão da violência, capturando, escravizando e vendendo indivíduos mundombes, kakondas, kilengues e outros. É difícil avaliar como esses indivíduos se identificaram, uma vez que sua existência histórica está registrada apenas em documentos escritos por europeus. As populações da região que hoje é Angola eram identificadas por seu local de captura ou afiliação política, e não está claro se essa era a identidade étnica que as pessoas empregavam naquela época.
Organizações políticas de diferentes tamanhos existiam na região que hoje chamamos de Angola. Ao sul do Rio Cuanza havia comunidades pastoris, como os mundombes; assim como comunidades agrícolas maiores, como as organizadas ao redor do chefe Kakonda, que mobilizava e controlava um centro comercial no interior do terrítório no planalto da Hanha. Além dessas populações menores, havia estados centralizados, como o Huambo. Caravanas comerciais de estados localizados no planalto central, como Bié ou Huambo, cruzaram o território de Kakonda em direção a Ombaka. Em Ombaka, os comerciantes do interior adquiriam peixe seco e sal, além de outros produtos, em troca de cobre, marfim e prisioneiros de guerra. Assim, uma complexa rede comercial existia nesta região que conectava as populações costeiras e do interior.
Mais pesquisas arqueológicas são necessárias para examinar com detalhes a organização econômica e social dos habitantes de Ombaka antes da chegada dos conquistadores portugueses. Sabemos que havia um mercado importante na região, mas ainda não sabemos muitos detalhes sobre a vida cotidiana dos seus habitantes. Após 1617, a situação mudou com a presença das forças portuguesas. Uma fortaleza foi erguida para proteger a guarnição portuguesa dos ataques franceses e holandeses, também interessados em ingressar no comércio de escravos ali. No entanto, a guarnição não impediu o ataque holandês e a ocupação de Benguela entre os anos de 1641-1648. Em 1649, uma expedição liderada pelo governador do Rio de Janeiro, Salvador Correia de Sá, retomou o controle de Luanda e Benguela a favor da Coroa Portuguesas. Essa operação militar deu inicio à relação estreita entre os oficiais coloniais e comerciantes baseados no Brasil e seus pares em Benguela. Ambas as cidades estavam sob controle colonial português e dependiam da exploração da mão de obra africana escravizada. A dependência era tanta que o padre António Vieira declarou que, “sem Angola não há Brasil.”
Após a retomada de Benguela, os agentes nascidos na colônia do Brasil passaram a patrulhar e a servir em Benguela. Se juntaram a homens de origem portuguesa que passaram anos em Salvador, Recife ou Rio de Janeiro antes de cruzar o Atlântico. Nascidos em Portugal ou no Brasil, esses agentes chegaram a Benguela influenciados por sua experiência na colônia das Américas, incluindo suas perspectivas sobre a legalidade da escravidão e o lugar dos africanos nas hierarquias raciais que organizavam a vida social no império português.
Princesse née de Malembe, Angola, 1786-87. In: Louis de Grandpre, Voyage à la côte occidentale d’Afrique, fait dans les annés 1786 et 1787. Paris, 1801, vol. 1, p. 75 (imagem em domínio público).
Na virada do século XVIII, a Coroa Portuguesa dependia de oficiais nascidos na colônia do Brasil para governar, proteger e expandir o controle colonial em Benguela e Luanda. Muitos deles eram degredados, criminosos condenados ao exílio, que haviam cometidos delitos variados inclusive a evasão fiscal. Entre os degradados enviados a Benguela estava Manuel de Sousa, homem negro condenado ao exílio por mau comportamento em Recife na década de 1710. Crimes mais graves, como homicídio, também resultavam na pena de exílio, como o caso de Felipe Nunes e António Freire, ambos baianos brancos, enviados para o degredo em Benguela. Mulheres nascidas no Brasil também se estabeleceram em Benguela, entre elas a baiana Ana Maria Vieira, que residia com o marido, também baiano, em 1771. Algumas brasileiras, entretanto, foram para Benguela com o intuito de comerciar, incluindo a Joana Josefa da Conceição, identificada como negra mineira. Joana Josefa da Conceição viajou sozinha para Benguela, o que sugere que participava do comércio de seres humanos, a principal atividade comercial em Angola até 1850.
As ligações entre Benguela e o Brasil tornaram-se ainda mais sólidas com a expansão do comércio de pessoas escravizadas, o que transformou o Rio de Janeiro no mais importante porto de escravos das Américas. De acordo com o banco de dados Slave Voyages, mais de 1.217.000 de africanos escravizados chegaram ao Rio de Janeiro entre 1570 e 1870. A maioria havia sido embarcada em Luanda, entretanto, cerca de 760.000 indivíduos foram deportados de Benguela. As fontes históricas disponíveis nos arquivos angolanos e portugueses permitem reconstruir a experiência de alguns desses indivíduos como os casos de Dona Leonor de Carvalho Fonseca, Páscoa, Bibiana ou ainda de Thereza.2 No entanto, a maioria dos escravizados e vendidos não deixou vestígios nos documentos históricos.
Entre 1650 e 1822, as pessoas nascidas na colônia do Brasil foram agentes-chave na sociedade e na economia de Benguela. Os indivíduos do sexo masculino se uniam às mulheres da elite local, consolidavam parcerias comerciais e estabeleciam famílias poderosas. Homens estrangeiros e mulheres locais criavam filhos que se beneficiaram da posição social dos pais. Vicente Alves da Cunha, batizado em Nossa Senhora da Conceição da Praia, na Cidade da Bahia, ocupava o cargo de capitão de Benguela. Em 1812 casou-se com Dona Cristina das Neves, natural de Quilengues, no interior do território. Dona Cristina era integrante da elite colonial local, filha de Joaquim de Barros Cunha, comerciante português estabelecido no presídio de Quilengues. A origem da mãe, no entanto, não está clara. Através da aliança matrimonial, se uniu a um comerciante baiano e atuava como mercadora em Benguela. Assim como esse casal, outros comerciantes estrangeiros buscavam o matrimônio como mecanismo de inserção social e econômica. As uniões com mulheres das elites locais permitiam aos estrangeiros ter acesso a terras, cativos e um grande número de dependentes livre, assim como facilitavam a manutenção de relações estreitas entre o estado colonial e os comerciantes transatlânticos.
Os oficiais nascidos no Brasil tornaram-se agentes auxiliares da administração colonial, ajudando a expulsar os mundombes de suas terras e escravizando os vulneráveis. Empregados pelo Estado colonial ou como degredados, indivíduos nascidos no Brasil participaram ativamente no sequestro e escravização de pessoas livres. Como soldados portugueses, invadiram aldeias, destruíram campos cultivados e capturaram homens, mulheres e crianças que depois foram vendidos a traficantes de seres humanos ancorados na Baía das Vacas, em Benguela. Comerciantes e agentes coloniais nascidos no Rio de Janeiro e em Salvador integraram-se à grande comunidade mercantil de Benguela compartilhando os mesmos interesses e provavelmente os mesmos espaços urbanos, incluindo a participação em missas na Igreja de Nossa Senhora do Pópulo. É preciso identificar o papel dos comerciantes nascidos no Brasil no comércio de cativos em Benguela para assim problematizar a nossa compreensão do colonialismo e das motivações econômicas das elites coloniais. O Brasil foi não só o destino, como também o motor de um sistema que levou à deportação de milhões de africanos escravizados para as Américas.
Mariana P. Candido é professora no Departamento de História da Universidade Emory, além de consultora de pesquisa do projeto Raízes Angolanas.
Notas:
1 Frederick P. Bowser, African Slave in Colonial Peru, 1524-1650 (Stanford: Stanford Univ. Press, 1974), 40–41; David Wheat, “The First Great Waves: African Provenance Zones for the Transatlantic Slave Trade to Cartagena de Indias, 1570–1640,” The Journal of African History 52, no. 01 (2011): 1–22; Kara D. Schultz, “‘The Kingdom of Angola Is Not Very Far from Here’: The South Atlantic Slave Port of Buenos Aires, 1585–1640,” Slavery & Abolition 36, no. 3 (2015): 424–44.
2 Mariana P. Candido, “African Freedom Suits and Portuguese Vassal Status: Legal Mechanisms for Fighting Enslavement in Benguela, Angola, 1800–1830,” Slavery & Abolition 32, no. 3 (2011): 447–59; Charlotte de Castelnau L’Estoile, Páscoa et ses deux maris: Une esclave entre Angola, Brésil et Portugal (Paris: PUF, 2019); Mariana Armond Dias Paes, “Shared Atlantic Legal Culture: The Case of a Freedom Suit in Benguela,” Atlantic Studies 17, no. 3 (July 2, 2020): 419–40.
Para entender a história de Benguela:
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