Por Mauricio Acuña
Mestre Pastinha: as malícias escritas de um capoeira-autor utiliza trechos do capítulo “Quando as letras fazem, mizerer: práticas de escrita na cidade gingada”, da tese de doutorado de Mauricio Acuña (2017).
…é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor…”
Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Um dos mais importantes papéis de Mestre Pastinha na capoeira ao longo do século XX, e ainda pouco conhecido, é o de escritor dedicado a pensar e compartilhar reflexões sobre a capoeira. São diversas composições que ainda não ganharam a atenção merecida e que passo a compartilhar.
Como estratégia para entrar na roda dos escritos de Pastinha, proponho começar seguindo o passo de outro mestre afro-brasileiro das periferias, o escritor Machado de Assis. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, o escritor criou um personagem da elite carioca, que afirma sua condição de autor após a morte, definindo assim a originalidade e o poder de seu lugar de escrita. Brás Cubas não é um escritor que, morto, passa a escrever do além-túmulo, mas um defunto que se decidiu a escrever. A partir desta inversão original podemos pensar Mestre Pastinha não como um autor que usa a capoeira como tema ou estilo, mas sim, como um capoeira-autor, portanto, como um mestre de capoeira que escreve. Mas a situação do nosso capoeira-autor não é tão simples quando lemos o que ele escreveu e como seus escritos foram lidos e considerados.
O problema principal é sobre o direito à escrita e ao reconhecimento público de quem escreve sob as condições do racismo estrutural e da forma social escravista no Brasil.1 Trata-se, portanto, de uma questão que existe, ao menos, desde a época do nascimento de Pastinha em 1889, um ano após a abolição da escravidão e pouco tempo depois da publicação do livro de Machado de Assis. A reflexão que proponho é sobre a história dos escritos de Pastinha e as formas como foram recebidos e interpretados ao longo do tempo, incluindo as cabeçadas, bananeiras, gingas e rasteiras que desde então rolaram. Cada um desses gestos inspiram os títulos das seções a seguir.
1 Me refiro com tais termos às reflexões contemporâneas sobre o racismo (Almeida, 2019; Sodré, 2023), que incluem ainda Suely Carneiro e o “dispositivo de racialidade” (2023) e a recente obra de Ynaê Lopes dos Santos, Racismo Brasileiro (2022).
Cabeçada
Naquele ano, o etnógrafo Edison Carneiro e o escritor Jorge Amado defenderam a criação de uma federação de capoeiristas, após exibição de Samuel Querido de Deus, Aberrê, Bugaia, Onça Preta, Barbosa, Zepelim, Juvenal, Polu e Ricardo no Segundo Congresso Afro-Brasileiro em Salvador.
Mestre Pastinha foi também criativo semeador de canções para a capoeira, registradas tanto em seus escritos quanto pelo etnógrafo afro-baiano Waldeloir Rêgo em seu pioneiro Capoeira Angola: Ensaio Sócio-etnográfico (1968). As quadras compostas e improvisadas ganharam notoriedade com a gravação em disco na década de 1960, onde ouvimos o “ABC” do mestre contando histórias de si e da capoeira, sem deixar de anotar que, “Pastinha já foi à África” para representar o país no Primeiro Festival Mundial de Artes Negras (FESMAN). Além do conhecido disco, o capoeira-autor registrou composições em manuscritos e cadernos, como o que foi preparado na década de 1960 a pedido de Mestre João Grande. Guardado cuidadosamente pelo discípulo por quase cinquenta anos, o Improviso de Pastinha foi publicado em 2013 pelo pioneiro pesquisador da capoeira, Frede Abreu, e Greg Downey.
Mas Pastinha seguiu buscando a escrita como forma de divulgar suas ideias entre capoeiristas e além, como foi o caso de textos entregues à musicóloga Emília Biancardi, em 1963. Biancardi foi fundadora do grupo folclórico Viva Bahia, reconhecido por levar representações das manifestações culturais afro-brasileiras para os palcos nacionais e internacionais. No início deste século, esse conjunto de escritos de Pastinha ganhou forma na edição bilíngue (português e inglês) de Frede Abreu e Greg Downey, Mestre Pastinha: Como eu Penso? Despeitados?, cujo título evoca perguntas sobre si e sobre quem o julga.
Um desses livretos foi doado ao Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, órgão ligado à preservação do folclore brasileiro, na época dirigido por Edison Carneiro. Já no ano seguinte, a cabeça de Pastinha seguiria empenhada na elaboração de novas narrativas, desferindo em cada ABC um novo golpe.
Bananeira
Esta posição invertida, com os pés no alto e equilibrando-se sobre as mãos, permite ao capoeirista atacar ou “deslocar-se em qualquer direção” (Pastinha, 1964) e, no nosso caso nos ajuda a pensar a pausa para o ataque que representou a publicação do célebre Capoeira Angola, impresso na Escola Gráfica Nossa Senhora do Loreto em 1964 e republicado em 1988, no centenário da abolição da escravidão.
A composição final do livro resultou em um texto amplamente editado, possivelmente pelo médico José Benito Colmenero e até pelo próprio Jorge Amado, segundo apontam as declarações de sua companheira, Maria Romélia Costa Oliveira, a Dona Nice, que o acompanhou em visitas à casa de Amado no Rio Vermelho para mostrar os rascunhos de seu livro (Acuña, 2017: 203). A intervenção editorial de figuras com formação universitária, como Colmenero e Amado, em textos de pessoas com educação primária, como Mestre Pastinha, não era incomum. O exemplo da grande escritora Maria Carolina de Jesus, cujo livro Quarto de despejo data da mesma época, ilustra essa prática. Essa situação venenosa recoloca a questão da autoria e da adequação à “norma culta”, as quais vistas de uma perspectiva afro-atlântica, convidam a pensar menos em português e mais em pretuguês, como ensina Lélia Gonzalez.
No entanto, é importante destacar que a relação de Pastinha com Jorge Amado era marcada pela amizade e pelo apoio do escritor às criações do mestre, além do incentivo para a sua circulação no ambiente da cultura letrada da Bahia. Pastinha virou ainda personagem do escritor.
Ginga
Com movimentos suaves, de grande flexibilidade e com toda a extraordinária malícia da capoeira (Pastinha, 1964), a ginga é o movimento perfeito para contar sobre o maior empenho de Mestre Pastinha como capoeira-escritor. Este teria ocorrido entre 1958 e 1962, quando ele se dedicou a redigir os manuscritos para um livro que nunca veria publicado. A imprensa baiana registrou seu envolvimento com esse projeto. Em 1959, por exemplo, ele foi descrito como “autor de vários cadernos com ensinamentos, anotações e desenhos”2.
Dois anos depois, seu nome aparece pela primeira vez associado ao projeto de um livro intitulado Metafísica e Prática da Capoeira de Angola, que seria ilustrado por Carybé e contaria com textos de Wilson Lins. Naquele momento, contudo, a autoria de Pastinha não era reconhecida, e a elaboração do livro era atribuída ao escritor Lins (Acuña, 2017: 200). Pouco tempo depois, o livro Capoeira Angola foi publicado e o projeto de Metafísica e Prática da Capoeira de Angola, que vinha sendo anunciado pela imprensa, simplesmente desapareceu do horizonte. É possível que tanto as condições de saúde do mestre, quanto a situação política e cultural da Bahia e do Brasil sob a ditadura tenham contribuído para que o manuscrito não fosse publicado.
Após a morte de Pastinha em 1981, novas pistas sobre o manuscrito surgiram, por exemplo durante a missa de trigésimo dia organizada por Dona Nice, Jorge Amado e Wilson Lins. Lins afirmou na ocasião que planejava lançar um livro em coautoria com Pastinha, intitulado Metafísica e Prática da Capoeira, mas que o projeto não fora realizado. Vários anos passariam até que as palavras de Pastinha, guardadas por Carybé e Wilson Lins, fossem entregues ao Mestre Decânio (Ângelo Decânio Filho). Com isso, mais de quarenta anos transcorreram até a primeira publicação dos manuscritos, sob o título A Herança de Pastinha, em 1997.
2 Souza, José de. Capoeiristas bahianos – Mestre Pastinha. Boletim da casa da Bahia, Rio de Janeiro, abril-maio 1959.
A afetuosa publicação de Mestre Decânio transcreve o texto original e acrescenta comentários para desenvolver os pensamentos do mestre e criar chaves de leitura. No mesmo período, Decânio publicou uma segunda edição com o formato original da letra de Pastinha e seus desenhos.
Poucos anos depois, o “caderno-albo” foi finalmente escaneado e ganhou uma versão digital, com difusão global pela internet, onde navega marinheiramente. Com esse lance, os manuscritos vêm se tornando uma das principais fontes para entender o pensamento e os ensinamentos de Pastinha.
Rasteira
Encerramos com a rasteira, gesto de arrasto com o pé diante do oponente, e que bem pode referir o destino incerto dos manuscritos de Pastinha e das análises sobre seus escritos. O formato dos manuscritos não é consensual em relação à sua organização ou extensão e, desde a sua publicação, tornaram-se mais evidentes as diferenças entre o estilo de escrita (vocabulário, estrutura das frases, pontuação etc.) e a forma de argumentação (tom, propósito, leitores, recursos linguísticos etc.), especialmente se comparado ao livro Capoeira Angola, de 1964. Por outro lado, desde a década de 1990, várias pesquisadoras, mestres e mestras vêm aprendendo com os saberes de Pastinha e defendendo o seu reconhecimento como filósofo da capoeira (Decânio, 1996; Araújo, 2015; Assunção, 2005).
A má notícia é que um conjunto tão importante das criações de Mestre Pastinha, desaparecido até a década de 1990, está inacessível. Embora circule pela internet em versão digital, a base material das palavras e desenhos que o mestre legou não se encontra disponível. Essa situação impõe um limite às capoeiristas, pesquisadoras e qualquer pessoa interessada em ter contato com as palavras do mestre. É muito importante um esforço coletivo que amplie o acesso aos manuscritos e possa dar-lhes uma casa cuidadosa e generosa, onde o debate e a memória histórica de um dos maiores mestres da capoeira e das culturas afro-brasileiras possam continuar alimentando corpos, letras e imaginações. Há várias instituições capazes de abrigar o manuscrito do mestre, como o Museu Afro-Brasileiro, Academia de Letras da Bahia, Associação Brasileira de Capoeira Angola, Fundação Casa de Jorge Amado, entre outras.
O certo é que o legado autoral de Mestre Pastinha é fundamental para compreender sua visão sobre uma arte afrodescendente ancestral e sua história. Embora o manuscrito tenha demorado décadas para ser publicado, Pastinha é pioneiro entre os mestres de capoeira na utilização da escrita como meio de disseminação de ideias, e possui um estilo próprio de convocar a memória e argumentar. A publicação de seus textos o coloca na vanguarda de uma tendência que só se consolidou no final do século XX, quando outros mestres de capoeira começam a ter seus escritos publicados.3. Dessa forma, os escritos de Pastinha iluminam aspectos menos discutidos de sua vida, revelando um generoso autor que, a partir da raiz-capoeira, pensa, improvisa e cultiva conhecimentos históricos, estéticos, políticos, pedagógicos e filosóficos. E Mestre Pastinha, capoeira-autor e semeador de palavras pode ainda ter deixado mais escritos a serem descobertos. Assim, ao lado das muitas canções que hoje entoam “viva Pastinha!”, podemos sorrir e acrescentar: “leia Pastinha,” que com sua malícia escrita convida, como na ladainha, “homem, menino, e mulher” e muitos mais para as rodas do presente e dos desafios futuros. Iê!
3 Entre os escassos antecedentes, destacam-se os livros de Mestre Acordeon (1986), Nestor Capoeira (1992) e os manuscritos de Mestre Noronha, publicados em 1993, os quais, como analisado por Matthias Assunção, “constituem um texto extremamente denso e uma mina de informações inéditas” (2014: 92).
Mauricio Acuña é professor de Literatura e Cultura Latino-Americana, com ênfase no Brasil, no Dartmouth College (EUA). Possui doutorado em Literatura Latino-Americana pela Universidade de Princeton e em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo. Seus interesses de pesquisa incluem as poéticas, performances e estéticas de artistas e intelectuais afrodescendentes, relações raciais, capoeira e festivais. Aprendeu capoeira por meio da sabedoria do Contra-Mestre Maurício Germano.

Referências
Acuña, Mauricio. A ginga da nação: intelectuais na capoeira e capoeiristas intelectuais. São Paulo, Alameda, 2015.
______. Maestrias de Mestre Pastinha: um intelectual da cidade gingada. Tese de doutorado, Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2017.
______. “Mestre Pastinha.” In: Gomes, Flávio dos Santos, Jaime Lauriano e Lilia Moritz Schwarcz. Enciclopédia negra: biografias afro-brasileiras. São Paulo, Cia das Letras, 2022.
______. Poéticas e performances de imaginações afro-atlânticas: O primeiro festival mundial de artes negras. Tese de Doutorado, Departamento de Espanhol e Português, Universidade de Princeton, 2021.
______. “Escritos de geração: Jorge Amado e Edison Carneiro na roda da capoeira.” Revista Trilhos, v. 2, n. 1, junho, 2021.
Araújo, Rosângela. É preta, kalunga: a capoeira angola como prática política entre os angoleiros baianos (anos 80-90). Rio de Janeiro, MC&G, 2015.
Almeida, Silvio. Racismo Estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.
Assunção, Matthias Röhrig. Capoeira: the History of an Afro-Brazilian Martial Art. New York: Routledge, 2005.
______. “Uma visão de dentro da vadiação baiana: os manuscritos do Mestre Noronha e o seu significado para a história da capoeira.” Revista África(s), v. 1, n. 2, jul./dez. 2014.
Carneiro, Sueli. Dispositivo de racialidade: a construção do outro como não ser como fundamento do ser. Rio de Janeiro, Zahar, 2023.
Decânio, Filho, Ângelo. A herança de Mestre Pastinha. A metafísica da capoeira – comentários de textos selecionados do mestre. Salvador: Coleção São Salomão, 1996.
Pastinha, Mestre. Capoeira Angola. Salvador, Escola Gráfica N.S. de Loreto, 1964.
______. Os manuscritos de Mestre Pastinha. Salvador, S.ed; s.d.
______. Centro Esportivo de Capoeira Angola. Salvador, edição do autor, 1963.
______. Como eu penso? Dispeitados? Salvador, Instituto Jair Moura, 2013.
Pinho, Osmundo. “Introduction” (Dossier: el pensamiento de Lélia Gonzalez, un legado y un horizonte). Lasa Forum, v. 50, p. 41-43, 2019.
Santos, Ynaê Lopes dos. Racismo Brasileiro: uma história da formação do país. São Paulo, Todavia, 2022.
Sodré, Muniz. O fascismo da cor. Rio de Janeiro, Vozes, 2023.
Comentando a passagem de texto acima:
“A má notícia é que um conjunto tão importante das criações de Mestre Pastinha, desaparecido até a década de 1990, está inacessível. Embora circule pela internet em versão digital, a base material das palavras e desenhos que o mestre legou não se encontra disponível. Essa situação impõe um limite às capoeiristas, pesquisadoras e qualquer pessoa interessada em ter contato com as palavras do mestre. É muito importante um esforço coletivo que amplie o acesso aos manuscritos e possa dar-lhes uma casa cuidadosa e generosa, onde o debate e a memória histórica de um dos maiores mestres da capoeira e das culturas afro-brasileiras possam continuar alimentando corpos, letras e imaginações. ”
As instituições abrigarem o acervo de Pastinha é importante. Mas a publicação do acervo de Pastinha é igualmente importante, pra que capoeiristas de diversos lugares do mundo não dependam de poder pagar uma passagem até um museu pra poder olhar a obra, vide o que acontece com o livreto do CECA em forma de Cordel ou o livro de registros.
Então privatizar seja por particulares seja por museus, é um atraso;
Estou trabalhando pra facilitar aos capoeiristas que quiserem pesquisar. acabei de publicar no facebook, vejam.
“Manuscritos de pastinha em paleografias
Trabalhando pra facilitar a leitura dos capoeiras. São os manuscritos em tons de cinza ou monocromático pra tornar mais hergonômica a leitura, acompanhado da transcrição. No formato digital vai possibilitar a pesquisa textual dos manuscritos.
Ainda em processo de montagem, pois é feito sem nenhum patrocínio e por mãos próprias. Já consegui filtrar toda a lista de nomes dos fundadores do CECA(quem tiver retificações, por favor me auxilie).”
https://www.facebook.com/simplespatines/posts/pfbid0SzqqLVoqAAXkuQbKtDDTYPgAMFZGEAHKUWKVj8E9hLYaRQ7AY7Vx1DFEign5wPdMl
Outro caso é a “sueca da capoeira”, coisa tão preciosa e permanece escondida de todos até hoje.
Obrigado pelos comentários, Joares! Estamos interessadíssimos na lista dos fundadores do CECA. Vamos seguir conversando. Um Abraço.