Por Maria Luísa Pimenta Neves.
Frederico José de Abreu (1946-2013), conhecido no meio da capoeira como Frede Abreu, foi um baiano que encontrou e se envolveu com a capoeira na década de 70. Sua formação é em economia, porém trabalhou em produções de cinema, teatro, bem como ocupou cargos em instituições voltadas a ações para a cultura popular, fomentando ativamente a capoeira e suas tantas multifaces.
Ele é considerado, pela comunidade da capoeira, um historiador autodidata, pesquisador de referência e escritor, bem como um atuante articulador e realizador de inúmeras ações que contribuíram para a capoeira e para capoeiristas nas décadas de 80, 90 e primeira década dos anos 2000. Dentre suas principais ações está a constituição de um dos maiores acervos da capoeira do mundo, com aproximadamente 30 mil itens, tais como: publicações, manuscritos, objetos, registros em vídeo. Abreu, ainda hoje, é celebrado um mentor para muitos/as dos/as grandes pesquisadores/as sobre capoeira, bem como para muitos/as capoeiristas. Integrou, junto a Matthias Röhrig Assunção, a consultoria para a construção do Dossiê 12 do IPHAN: Roda de Capoeira e Ofício dos Mestres de Capoeira, o importante inventário cultural para registro e salvaguarda da capoeira como Patrimônio Cultural do Brasil (2008).
Sua obra publicada é composta de, pelo menos, seis livros autorais e cinco livros sob sua organização, além de artigos, palestras, depoimentos, prefácios e publicações em blogs. Há ainda suas contribuições em pesquisas ou trabalhos de outras temáticas, como sua colaboração na produção do documentário Um Vento Sagrado, sobre Agenor Paiva, babalaô de referência do candomblé.
Da mesma forma, Frede esteve vinculado às constituições do Centro Esportivo de Capoeira Angola de João Pequeno de Pastinha e da Fundação Mestre Bimba, instituições relevantes para a preservação e divulgação do legado dos mestres icônicos Pastinha e Bimba. Ele foi responsável pela redação, junto a Demerval dos Santos Machado, do discurso proferido quando da entrega do diploma de Doutorado Honoris Causa recebido pela família de Manoel dos Reis Machado, Mestre Bimba. Essas são algumas movimentações que destacamos como representativas da pluralidade da ação de Abreu.
Marcam também sua trajetória, ações em prol da visibilidade da capoeira e de seus mestres no Liceu de Artes e Ofícios da Bahia (anos 80 e 90); a criação e implantação do projeto Capoerê em Salvador (anos 90), quando atuou no Instituto Mauá e estabeleceu uma parceria que impulsionou este projeto no sentido da valorização profissional do mestre de capoeira e de seus aprendizes; assim como as várias ações sócioeducativas ocorridas na ONG Mandinga, também Salvador (na primeira década dos anos 2000). As muitas ações agregadoras promovidas por Abreu promoveram o acesso à capoeira a um público bastante diverso, além de envolverem desde pesquisadores de renome até crianças frequentadoras dos chamados projetos sociais em discussões sobre o tema que terminaram por referenciar na sua pesquisa, ação e acervo.
"Copo de Veneno"
O trabalho Copo de Veneno: reflexões sobre corpos de capoeira na práxis educacional de Frederico José de Abreu, que disponibilizamos no link, é uma dissertação de mestrado da área da Educação (PPGE/UFBA), e identifica aspectos da ação de Abreu no segmento da capoeira que evidenciam elementos condizentes a uma práxis socioeducacional e cultural de caráter humanista, que aponta para uma educação libertária e contra hegemônica. O conceito de práxis que nos impulsiona tem referência em Paulo Freire. Nossa metodologia privilegiou a investigação documental, oral e imagética sobre Frederico Abreu e sua relação com a capoeira. Lançamos mão de documentos que registram a ação de Abreu, anotações de conversas e experiências da pesquisadora, bem como depoimentos e entrevistas, em diálogo com mestres/as populares da capoeira, intelectuais da educação, da pesquisa em capoeira e artistas tropicalistas. Tomamos como fontes parte da extensa produção de Abreu e encontramos em seu próprio texto a possibilidade de estabelecer uma dialogia com o que consideramos indicativos de cunho humanistas e /ou educacionais. Este universo”’ pesquisado possibilitou destacar potencialidades (auto)transformadoras e socioeducativas que, no contexto da capoeira, se relacionaram/relacionam com uma pluralidade de modos de ser, fazer e interagir no mundo, a partir da experiência dos capoeiristas em diferentes períodos. Relações protagonizadas por corpos de capoeiras que apresentam peculiaridades intrínsecas à história social do Brasil. Buscamos compreender como Frede se relacionou com isso, ou parte disso, e como ele percebeu essas relações.
O Capoerê foi (e ainda é!) um projeto de ensino da capoeira Regional sob a condução de professores da Escola de Capoeira Filhos de Bimba, liderado pelo Mestre Nenel e que, a partir de núcleos organizados em parcerias em bairros de Salvador, atende crianças até 16 anos. Frede Abreu juntamente a Saguim (hoje, Nestre Saguim!) e a Mestre Nenel traçou as linhas de ação dessa proposta que investe na formação de profissionais da capoeira. Foi ele o responsável por conseguir uma parceria junto ao Instituto Mauá de Salvador para alavancar o projeto, vinculando o feitio de instrumentos à proposta, considerando que o IM é uma organização que apoia o artesanato popular.
A ONG Mandinga foi, na primeira década de 2000, um espaço dirigido pelo Mestre Sabiá, que acolhia as atividades do grupo de capoeira Gingamundo e do Instituto Jair Moura (acervo de Abreu disponível para consulta, contando, inclusive, com a oferta de atividades, como o Grupo de Estudos Mestre Noronha). Abreu contribuiu na criação e na coordenação pedagógica da proposta e, pelo período de quase uma década, o ‘Vadeia Menino Vadeia’ movimentou a comunidade local e grande parte do meio da capoeira de Salvador.
No quarto capítulo revisitamos a questão central do trabalho, seus desdobramentos e objetivos, trazemos considerações finais e apontamentos da investigação. Consideramos relevante destacar as três entrevistas com Frede Abreu utilizadas na dissertação. Elas foram realizadas pelos pesquisadores Lang Liu, Ana Marcílio e Luis Vitor Castro Júnior, quando em pesquisa de campo para realização de trabalhos acadêmicos. Essas entrevistas compõem o acervo da autora, bem como dos entrevistadores, e não estão publicadas nos anexos do trabalho por ainda precisarem de um melhor tratamento de suas transcrições. As entrevistas inserem a voz de Abreu como participante-ativo no trabalho, seguindo novamente o traçado metodológico da sua ação: era hábito seu destacar a relevância das narrativas diretas ou indiretas de mestres/as populares ou de personagens que estiveram em ação nos tantos períodos e contextos da capoeira. Igualmente é importante agradecer a Elza de Abreu, Mestre KK Bonates, Mestre Sabiá, Mestra Patrícia e Mestre Nenel, pela generosidade com que, em algum momento do tecer do corpo do nosso trabalho, muito contribuíram para essa realização. À Prof. Dra. Maria Cecília de Paula, orientadora desta pesquisa, nossa sincera gratidão.
Jogamos com a forma disforme não dicotômica ou contraditória da capoeira no título desse trabalho, quando simbolizamos a capoeira como “copo de veneno” (também em alusão à realidade pandêmica, compreendendo a relevância do uso do veneno de animais peçonhentos para a criação de soros, assim como do vírus para criação da vacina contra a covid-19). Chamamos, assim, atenção para a possibilidade de pensar e propor a evidenciação e compreensão dos contextos controversos da história e dos personagens da capoeira como possível fomento do debate acerca da constituição de pedagogias potentes, multifacetadas e reexistentes na capoeira, a qual realizou a prometida ““volta ao mundo” cantada e proferida por tantos/as praticantes e, assim, prossegue se expandindo e sendo reconhecida como ferramenta sócioeducativa para muito além do Brasil.
Ressaltamos que é premissa desta investigação prestar homenagem à vida e obra de Frede Abreu e reiteramos nossa intenção de continuar caminhando no sentido do acesso às contribuições e à visibilidade desse pesquisador da capoeira, para que novas gerações não percam de vista a relevância da sua dedicação e realização de tantas iniciativas para a valorização da capoeira e, principalmente, dos capoeiristas. Ele integra, com destaque, a galeria das vidas dedicadas à visibilização de muitas facetas potentes da capoeira.
Maria Luísa Pimenta Neves, conhecida na capoeira como Lilu, está radicada na Bahia desde 2000. É mestra de capoeira, tendo iniciado sua prática em Minas Gerais em 1992. É mestre em Educação (UFBA), pesquisadora, autora das traduções de três livros de Frede Abreu para o inglês, escritora de livro infantil sobre capoeira, produtora cultural e fã de Frederico José de Abreu. Contato: [email protected].
Parabéns a pertinaz Mestra Lilú, que com inteligência, sabedoria, carinho e generosidade (também atributos de Frede Abreu) colocou nessa “panela acadêmica”, muita pimenta e dendê em seu estudo que registra e da continuidade na manutenção da memória sobre Fred e de sua importância na capoeira. Parabéns ao Mathias por propiciar esse importante espaço para a divulgação de trabalhos sobre a capoeiragem
Obrigado KK! Quando tiver nova pesquisa para divulgar, fale com a gente!