Por Filipe Amado.
Hoje sabemos que a história da capoeira não se restringe apenas ao eixo Rio de Janeiro – Bahia. Diversas são as cidades que possuem vestígios em sua história de intensa atividade de capoeiras no final do século XIX e começo do XX. Novas pesquisas brotam sobre o assunto e muito ainda há para ser pesquisado e descoberto.
São Paulo se apresentava como um desses locais com terreno fértil para a pesquisa da história da capoeira e com poucos trabalhos a respeito (CUNHA 2011 e CAVALHEIRO 2017). Ao mesmo tempo, a cultura negra, e especialmente a capoeira no pós abolição, é um tema ainda com muito espaço para pesquisas, como se houvesse um hiato entre a grande repressão do início da república e o desenvolvimento do modelo baiano de capoeira. Partindo dessas inquietações e de vestígios de capoeira em terras paulistas que não diziam respeito ao modelo baiano (caso da tiririca que será explorada em outro artigo), pesquisei a capoeira em São Paulo na primeira metade do século XX e desenvolvi o tema na minha dissertação de mestrado.
Para falar de capoeira em São Paulo nas primeiras décadas do século XX é importante entendermos que já existia uma tradição de capoeiragem na cidade desde o século XIX, entre escravos, libertos e até entre a elite na Faculdade de Direito do Largo São Francisco.
Uma sociedade elitizada, espelhando valores europeus, se estabelecia e desprezava a presença negra, que teimava em brotar nas praças e ruas da cidade. Emblemática é a mudança da igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos da rua XV de Novembro (atual largo Antônio Prado) para o Largo Paissandu. Havia um cemitério e moradias negras no entorno da igreja, situada bem no coração da cidade, que, para além dos cultos católicos, era um local de encontros e práticas religiosas e culturais africanas.. Sua mudança de endereço em 1904 fez parte de uma política higienista que visava expulsar a população negra do centro e abrir praças e avenidas para melhorar o fluxo de pessoas e carros e levar o “progresso” para São Paulo (BRITTO, 1986 e SECO, 2008).
Esse é o tom dos jornais das duas primeiras décadas do século XX ao falar da população negra e suas práticas, incluindo os casos de capoeira, que pipocam nas páginas de ocorrências policiais e retratam os capoeiras como bandidos transgressores (mas deixando transparecer seu lado lúdico), a formação de grupos nos moldes das maltas cariocas e a presença de mulheres e crianças na capoeiragem paulistana.
- Oh Ferro! Nunca vi tanto aço!
Segundo matéria do Correio Paulistano de 26/11/1907, que reproduz uma ata da Câmara Municipal de São Paulo de 1907, desde o começo daquele ano, juízes da capital proferiram sentença em 673 processos referentes à capoeiragem, vagabundagem, jogos e apostas, uso de armas proibidas, e crimes contra o trabalho. Todos esses são crimes relacionados à população marginalizada. São formas de repressão, controle e exclusão de suas atividades que não se enquadravam na sociedade do trabalho em formação na São Paulo do início do século XX.
A expressão “Oh Ferro! Nunca vi tanto aço” pode ser atribuída aos capoeiras do início do século XX em São Paulo e é encontrada em alguns artigos que se referem à capoeira. Em 28 de maio de 1900, o jornal Correio Paulistano apresenta em algumas linhas na coluna de Vida Diária, junto a outras notícias de agressões e roubos,: a notícia de que “Candido Elias Gonçalves, que se gaba de ser o melhor capoeira dessa terra, hontem à noite fazia bonito passando rasteiras nos menores que assistiam a retreta no jardim do palácio, gritando oh ferro, nunca vi tanto aço!”
Assim como Candido Elias, havia centenas de capoeiras espalhados por São Paulo, resolvendo conflitos, brigando e resistindo a prisões, treinando e se divertindo com a capoeira. Sim, há muitos relatos da capoeira como brincadeira nos jornais. Porém, como a tônica dos noticiários são crimes ou questões envolvendo a polícia, a violência é uma constante nos relatos de capoeira, porque, muitas vezes, as brincadeiras acabavam em brigas:
Na rua Vergueiro o preto Alfredo Eugênio, de 22 anos de edade, morador da alameda Ribeiro da Silva n. 57, jogava a capoeira hontem às 2 horas da tarde com diversos companheiros. Um destes, exasperado por ter cahido a uma rasteira de Alfredo, vibrou-lhe uma navalhada no lado direito do maxilar inferior. O agressor evadiu-se em seguida e a victima foi medicada na Polícia Central.” (Correio Paulistano, 2 de julho de 1913. Grifos nossos)
Estes capoeiras do início do século XX usavam navalhas, cacetes e bengalas, armas herdadas da capoeiragem imperial, e também golpes clássicos, como cabeçadas, rasteiras e rabos de arraia. Disputavam territórios e espaços na cidade e resistiam a todo instante ao modelo civilizacional a eles imposto.
A formação dos grupos
Em 06/12/1903, o Correio Paulistano traz a seguinte nota:
CAPOEIRA – A cafetina Maria Luiza, teve hontem uma questão na sua casa, à rua senador Feijó, com Carolina Vieira e Guilhermina da Silva. Depois de longa troca de palavras insultuosas, Maria Luiza começou a jogar capoeira. Appareceu, porém naquella ocasião uma praça que prendeu Maria Luiza, à ordem do dr. Pedro Arbues Junior 2º delegado.” (Grifos Nossos)
Embora em menor número, os jornais revelam casos de mulheres jogando capoeira e participando do mundo de valentia e malandragem nas ruas de São Paulo. Maria Luiza não é a única a se utilizar da capoeira em conflitos e, assim como os homens, tinha uma profissão marginalizada, era cafetina de um bordel. Os capoeiras eram carroceiros, pedreiros, prostitutas, pintores, carregadores, entre outras profissões onde a população negra achava possibilidades de sobrevivência, e que carregavam em si uma tradição vinda do século XIX de autonomia e liberdade no ambiente urbano.
A notícia de 15/01/1900 no Estado de São Paulo revela um pouco mais sobre a organização em grupos:
É bem conhecido, por todos quanto costumam passar pela várzea do Carmo, nos domingos, do meio dia em diante, o originalíssimo espetáculo que oferecem os desocupados das ruas Vinte e Cinco de Março e Santa Rosa, de uns combates a pedradas travados no aterrado do gasômetro. …as autoridades do Brás conseguiram apurar que os desocupados da rua de Santa Rosa têm três partidos formados, que disputam com outros três da rua Vinte e Cinco de Março, havendo em cada um delles uma bandeira diferente e os respectivos chefes, que são vagabundos adestrados no jogo da funda, capoeiras e navalhistas, que se impõem aos companheiros e subordinados pela força e pela brutalidade de que dão provas nas investidas da várzea.” (Grifos Nossos. Nota: Jogo da funda seria o ato de arremessar pedras à distância com a ajuda de uma corda, uma arma de arremesso medieval)
Aqui vemos claramente a formação de grupos de capoeiras com hierarquias, pois há chefes, territorialidades ligadas às ruas e símbolos que os identificam, tais como bandeiras. Essas são características equivalentes às maltas cariocas do século XIX e, apesar de não receberem este nome aqui, possuem evidente similaridade. Mais que isso, são agrupamentos, pois há três da rua Vinte e Cinco de Março, que fica de um lado do Rio Tamanduateí, e três da rua Santa Rosa, do outro lado, ou seja, são grupos com territorialidades, muitos similares às federações de maltas Nagoas e Guaiamuns.
Por essa e outras notícias, temos indícios de que a região da Várzea do Carmo era um local de disputa entre maltas ou grupos de capoeiras, provavelmente uma zona fronteiriça. Aqui vale ressaltar que malta é um termo português que deixa de ser usado na república e, portanto, os jornais não qualificam mais os grupos assim.
Outra notícia do Estado de São Paulo, em 08/02/1914, mostra novamente um agrupamento de capoeiras e, não à toa, numa região ocupada historicamente por negros:
Pedem-nos que chamemos as vistas da polícia sobre agrupamento de indivíduos que todas as tardes até altas horas da noite dão lições gratuitas de capoeira na rua Conselheiro Carrão, no trecho comprehendido entre a esquina da rua Ruy Barbosa e Treze de Maio. As famílias não podem por ali transitar, porque é demais audaciosa e desrespeitadora a atitude de semelhante gente.” (Grifos nossos)
Se a regularidade do encontro de “todas as tardes” no Bexiga demonstra o quanto a capoeira era uma prática cotidiana na cidade de São Paulo, o fato de se ensinar capoeira no local é revelador de uma possível forma de transmissão da capoeira em grupo, nos moldes das maltas cariocas.
Quem o vê assim gordete
não calcula que capoeira,
que cabra bom no porrete,
que cabra bom na rasteira.
Confirmando o que se diz,
que o diga Washington Luiz…”
A caricatura de um capoeira, publicada em 12/02/1926. O jornal humorístico O Sacy brinca no final da legenda com a suspeita, que existia na época, de que o próprio presidente Washington Luiz fosse um capoeira.
O mapa da capoeira
Pelo mapa podemos perceber que a maioria dos casos ocorrem no Centro e nos bairros adjacentes, ocupados principalmente pela população negra, por imigrantes e com maior concentração demográfica. Mesmo assim, há notícias de capoeira em bairros mais afastados e pouco povoados, como a Lapa, Vila Madalena e Pinheiros, onde em nossas pesquisas encontramos vestígios de comunidades negras.
Frequentemente os jornais paulistanos apresentam traços étnicos-raciais dos acusados de capoeiragem e essas descrições, quase sempre imbuídas de racismo explícito, demonstram que a grande maioria era negra. Não há sequer um capoeira branco apresentado pelos jornais, diferente da capoeira carioca do final do Império, onde a presença de brancos e imigrantes é massiva. Tudo nos leva a crer que isso não ocorre na capoeira paulista das primeiras décadas do século XX. A favor dessa hipótese pesa a enorme discriminação e segregação que deixou a capoeira restrita às comunidades negras, pelo menos nessas duas primeiras décadas do século.
Mas a elite paulistana também criou seus próprios projetos para a capoeira. Se nas duas primeiras décadas do século XX, as notícias de jornais são sobre a capoeira como violência urbana, a partir da terceira década, elas mudam significativamente de tom e de foco. Acompanhando um movimento amplo no país, a capoeira será alçada à símbolo nacional pelos jornais paulistanos e acabará participando de lutas nos ringues paulistas para provar sua eficiência marcial. Mas esse será o tema de um próximo artigo.
Referências:
AMADO, Filipe. Abre a Roda Minha Gente que o Batuque é Diferente, tiririca, capoeira e samba em São Paulo, 1900-1970. Dissertação de mestrado, Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) USP, 2021.
BRITTO, Iêda Marques. Samba na cidade de São Paulo (1990 – 1930): Um Exercício de Resistência Cultural. São Paulo: FFLCH/USP, 1986.
CAVALHEIRO, Carlos Carvalho. Notas para a História da Capoeira em Sorocaba. Editora Crearte, Sorocaba, 2017.
CUNHA, Pedro Figueiredo Alves da. Capoeiras e valentões na história de São Paulo (1830-1930). Dissertação (Mestrado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.
SECO, Lincon (org.) São Paulo Espaço e História, LCTE Editora, São Paulo, 2008.
Filipe Amado é historiador (FFLCH USP) e mestre em Estudos Brasileiros (IEB USP)
Jornais Consultados:
Correio Paulistano: 28 de maio de 1900
Correio Paulistano: 26 de novembro de 1907
Correio Paulistano: 6 de dezembro de 1903
Correio Paulistano, 2 de julho de 1913
Estado de São Paulo: 15 de janeiro de 1900.
Estado de São Paulo, 8 de fevereiro de 1914
Diário Nacional, 6 de novembro de 1927
O Sacy, 12 de fevereiro de 1926