Por Stefania Capone.
A filosofia Ubuntu é visto como modelo de comportamento ético por alguns grupos de capoeira. A antropóloga Stefania Capone, especialista em religiões de matriz africana na diáspora, compartilha com CapoeiraHistory.com a sua recente fala sobre o tema.
Este post é a transcrição da palestra proferida pela autora na abertura do XIII Seminário Tumba Junsara ─ “Redescobrindo sua história”, na Universidade Federal da Bahia (UFBA), Brasil, em 5 de agosto de 2022.
Mukuiu!
Boa tarde a todas e a todos. Antes de tudo, queria agradecer ao Terreiro Tumba Junsara, à Nengua Mesoeji – Iraildes Maria da Cunha –, à Diretoria da AbemTumba, especialmente ao seu Diretor Geral, Esmeraldo Emetério de Santana Filho, Tata Zingue Lubombo, e ao Tata Evilásio Nkodiamambo por terem me convidado a participar deste encontro.
É um prazer e uma honra estar aqui com vocês, mesmo de forma remota, nessa conversa sobre ubuntu. Gostaria de abrir minha fala com uma saudação que me parece expressar a essência mesma da filosofia ubuntu: “Sawu Bona”, uma saudação zulu que significa “eu te vejo”. A resposta a essa saudação é “Sikhona”, ou seja, “eu estou aqui”. Reconhecer o outro, “vê-lo”, é assim uma forma de fazê-lo existir.
Essa saudação é uma outra maneira de expressar o ditado zulu e kossa [xhosa], “umuntu ngumuntu ngabantu” que pode ser traduzido como: “Uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas”. Isso quer dizer que um ser humano só se realiza quando humaniza outros seres humanos, quando “os vê” e, desta forma, “os faz existir”.
Difusão na África do Sul e ubuntu político
Sabemos que essa filosofia ubuntu se difundiu na África do Sul pós-apartheid e tem gerado a utopia da sociedade do Rainbow People, o Povo Arco-Íris, uma utopia cara a Nelson Mandela e ao Reverendo Desmond Tutu. Durante o longo processo que seguiu a abolição do apartheid nesse país africano, a Comissão da Verdade e Reconciliação promoveu uma palavra ubuntu: uma palavra compartilhada, uma palavra que cura as feridas do apartheid, as feridas da segregação racial.
Apesar das dificuldades ainda existentes na sociedade sul-africana, a filosofia ubuntu constitui, sem dúvidas, um grande legado à humanidade, um legado que fala de solidariedade e de respeito. Na filosofia ubuntu, a desumanização de outros seres humanos é de fato um obstáculo para o autoconhecimento e nos impede de realizar todas as nossas potencialidades. Por isso, o ubuntu é considerado por muitos como uma filosofia humanista que poderia corrigir inclusive os efeitos negativos da globalização econômica e cultural.
Para alguns, esta visão de mundo poderia ajudar a produzir instituições dialógicas, inclusivas e solidárias, em busca de soluções negociadas. Era esse o sonho de Nelson Mandela e de outros líderes do movimento anti-apartheid na África do Sul para sair definitivamente da mentalidade da segregação racial, fomentando um diálogo intercultural que poderia contribuir para uma perspectiva geral de reconciliação.
Ubuntu é, então, antes de tudo, uma utopia, o sonho de uma civilização ideal: a filosofia ubuntu se baseia na ideia de que a comunidade humana é una e indivisível: ninguém pode ser colocado contra outro e nenhuma distinção deveria ser feita com base na “raça” ou na cor. Para a filosofia ubuntu o destino de cada pessoa está ligado ao destino de todos. Por isso, o ubuntu político é pensado por muitos como um projeto de inclusão, solidariedade e construção de consenso, onde a humanidade é vista como uma comunidade de vida e de destino. Uma pessoa com ubuntu tem consciência de que é afetada quando seus semelhantes são diminuídos, são oprimidos. Como lembra o filósofo Renato Noguera (2012), ubuntu é “uma maneira de viver, uma possibilidade de existir junto a outras pessoas de forma não egoísta, uma existência comunitária, antirracista e policêntrica.”
Ecológico e espiritual
Muitas vezes o termo ubuntu é traduzido como “humanismo”. Mas, se a filosofia ubuntu fala da “humanidade” – “eu sou porque você é” – ela fala também de tudo o que existe, pois toda a realidade está integrada, não somente os seres humanos. O ubuntu se baseia na ideia de que tudo no cosmos é interdependente e interligado. Em outras palavras, nada existe em si mesmo, nada é verdadeiramente autônomo e separado do restante.
Isso é muito próximo da visão preservada nas religiões de matriz africana no Brasil, onde o ser humano é o produto da confluência de energias distintas que conjugam diferentes planos – e modos – de existência: seres humanos, animais, elementos da natureza, potências espirituais, deuses, espíritos, ancestrais…. Todos esses planos e modos de existência devem “viver juntos”, coexistir em harmonia para concretizar a filosofia ubuntu. Nessa filosofia existe, portanto, uma dimensão ecológica e também uma dimensão espiritual, que se conecta ao passado através dos ancestrais.
Para muitos, o ubuntu exigiria também tolerância entre as pessoas, pelo fato de todas elas serem membros de uma mesma comunidade. No pensamento africano, tolerar e respeitar o ponto de vista dos outros seria um comportamento inato, porque todos estão ligados e o que é feito a um tem um impacto na vida de todos, tanto no plano social como no espiritual. Como escrevia o padre Tempels em seu livro sobre a filosofia bantu, publicado em 1959: “O mundo das forças é como uma teia de aranha da qual nenhum fio pode vibrar sem abalar toda a rede.” (p. 41)
Se os outros são seres diferentes com os quais existimos, essa coexistência deve exigir tolerância dos dois lados, sobretudo nesses tempos sombrios onde a chamada “intolerância religiosa” é uma máscara que mal esconde o racismo estrutural que fundamenta a sociedade brasileira. Como diziam as saudosas Mãe Beata e Makota Valdina, ninguém quer ser tolerado. O que se quer é respeito, respeito às diferenças culturais, respeito aos modos de existência que não reproduzem uma visão do mundo judaico-cristã.
O ubuntu vai além do humanismo ocidental que se baseia apenas no respeito (não invadir o território do outro, limitar o exercício da própria liberdade em relação à dos outros…). Praticar o ubuntu é quebrar a ilusão da separação para se reconhecer no outro. Na realidade, antes de ser uma filosofia, o ubuntu é uma ética de vida para além do conceito de respeito e de compaixão, no sentido de que não é simplesmente uma “com + paixão”, o fato de sofrer com o sofrimento do outro, mas uma questão de estar atento e compreender o outro. Se o outro é um pedaço de mim, significa que eu preciso dele para estar completo, para ser o que realmente eu sou. O outro me completa, em vez de me diminuir.
O ubuntu poderia então ser uma resposta à violência, ao racismo, à intolerância religiosa que tanto assola o Brasil contemporâneo?
Ubuntu implica o desejo de se ver nos outros, de se colocar em seu lugar, de aprender a escutá-los a fim de compreendê-los melhor para alcançar uma vida mais harmoniosa, no respeito e na benevolência, no entanto, isso não elimina o conflito. E permitam-me citar de novo o filosofo afroperspectivista Renato Noguera que, em uma gravação para o evento “Ubuntu e resistência negra”, declarou que o ubuntu “não é uma panaceia mágica, onde as pessoas se amam, se abraçam e o mundo fica colorido”. Concordo plenamente com ele, pois o conflito é inerente à condição vivente e está sempre presente nas relações humanas. De fato, a importância do conflito na existência e na manutenção do mundo é um elemento central nas filosofias que fundamentam todas as religiões de matriz africana no Brasil e não somente as de origem bantu. Os iorubás acreditam, por exemplo, que o conflito perpetua o mundo, como no trabalho de Exu, que provoca o caos para reestabelecer a ordem.
Para Noguera, o que o ubuntu está a dizer é que precisamos de “um diálogo multilateral para que a gente possa criar novas possibilidades de interlocução e de produção de realidades”. Era essa a utopia prefigurada pela Comissão da Verdade e Reconciliação na África do Sul: promover uma palavra ubuntu, ou seja, uma palavra compartilhada, para realizar o que foi chamado de “milagre da solução negociada”, através da promoção do diálogo e o reconhecimento do direito comum à memória, à justiça e à palavra.
Ubuntu em dimensão metafísica
É na sua dimensão metafísica que o ubuntu nos permite pensar esta ligação aos outros, a todos os planos de existência. De fato, como sublinham vários autores africanos, como Felix Murove (2011), a eficácia da filosofia ubuntu vem da primazia que ela dá à “racionalidade relacional”. Ora, considerar o homem como essencialmente relacional é um desafio direto à concepção individualista e egocêntrica do ser humano. É na realidade de nossa mútua dependência que alcançamos a plenitude de nossa humanidade, o que inclui os vivos e os mortos, os diferentes planos de existência. Aqueles que viveram no passado tornaram possível minha existência atual e eu, por minha vez, influenciarei o futuro quando me unir aos meus antepassados na morte.
Nisso, encontramos de novo essa visão utópica de harmonia e coesão no seio da comunidade.
Todavia essa visão não é expressa somente pela filosofia ubuntu contemporânea. Nos anos sessenta, Leopold Sédar Senghor, o fundador do movimento da negritude e primeiro presidente da República do Senegal, já expressava esta visão quando escreveu, em Liberté, négritude et humanisme, publicado em 1964, que a identidade africana só poderia ser concebida com base na relação com o outro: “Aqui, então, está o negro-africano que simpatiza e se identifica, que morre para si mesmo a fim de renascer no Outro. Ele não assimila, ele se assimila a si mesmo. Ele vive com o Outro em simbiose. ‘Penso, portanto, sou’, escreveu Descartes […]. O negro-africano poderia dizer: ‘Eu sinto o Outro, eu danço o Outro, portanto eu sou…’.” (p. 259)
Sabemos que a racionalidade cartesiana fundamenta o individualismo ocidental moderno que enfatiza a singularidade do indivíduo como indispensável à própria noção de pessoa. Mas o ditado umuntu ngomuntu ngabantu, que indica que um indivíduo depende dos outros para ser uma pessoa, modifica radicalmente esta doutrina do individualismo e afirma que a individualidade depende da relação com os outros, sendo, portanto, não uma propriedade inalienável do indivíduo, mas algo compartilhado com os outros, que é enriquecido e desenvolvido através da relação com os outros, sem se limitar à sociedade humana e incluindo também o mundo natural e o mundo espiritual.
Se a filosofia ubuntu estava já em germe no movimento da negritude, ela está também presente na origem do panafricanismo político e na obra de outros militantes da causa negra, como o escritor martiniquês Edouard Glissant, cujo pensamento sobre a relação é de fato muito próximo do pensamento ubuntu.
A milonga e a dimensão ritual do ubuntu
O que me parece particularmente interessante ─ e que gostaria de frisar para concluir ─ é pensar a filosofia ubuntu em sua dimensão ritual.
Em artigo publicado em 2020 junto a minha colega Mariana Ramos de Morais, temos analisado a incorporação da noção de “milonga” nos processos de patrimonialização dos terreiros de candomblé.
A “milonga” poderia de fato ser pensada como uma forma de ubuntu – reconhecer e incorporar o que o outro nos traz e isso constitui uma resposta poderosa aos discursos sobre a pureza, que são ainda tão presentes no universo religioso de matriz africana na Bahia, especialmente em algumas casas nagôs. Tenho analisado esta questão no meu livro A busca da Africa no candomblé e em várias outras publicações ao longo dos últimos anos.
Apenas para dar um exemplo, um dos autores que mais ressaltou a suposta “pureza” dos ritos nagôs foi o francês Roger Bastide que, logo na abertura do seu O candomblé da Bahia, publicado no final dos anos 50, justificava sua escolha pelo estudo do “rito nagô” dentre as distintas modalidades de candomblé, afirmando que “(…) a influência dos iorubás domina sem contestação o conjunto de seitas africanas, impondo seus deuses, a estrutura de suas cerimônias e sua metafísica aos daomeanos e aos bantos. É porém evidente que os candomblés nagô, queto e ijexá são os mais puros de todos, e só eles serão estudados aqui.”
Nesse trecho, Bastide não apenas justifica sua escolha como também hierarquiza as modalidades de candomblé. Essa visão é evidentemente herdada de seus antecessores, como Nina Rodrigues, Arthur Ramos ou Edison Carneiro. Para eles, as religiões bantu seriam “degeneradas” por serem mais abertas às influências externas, enquanto que o candomblé nagô teria preservado no Brasil uma suposta “pureza” ritual africana.
Essa classificação das religiões vinculadas aos bantos como “degeneradas” e as advindas dos iorubás como “puras” tem também um impacto na seleção dos terreiros que foram alçados a patrimônio cultural no Brasil. Na lista dos terreiros tombados pelo Iphan, os nagôs são de fato proeminentes. Dentre os onze terreiros patrimonializados, sete têm raízes iorubás, dois são jêjes e dois são bantos.
Ora, se percorrermos rapidamente o período compreendido entre o primeiro tombamento de um terreiro de candomblé, a Casa Branca em 1984, e os últimos, em 2018, veremos que os critérios e os argumentos que fundamentaram as escolhas dos terreiros mudaram consideravelmente.
É importante frisar que, a partir dos anos 80, a preservação dos “afro-patrimônios” ─ o termo que eu e a Mariana cunhamos para referirmos aos bens culturais de matriz africana no Brasil ─ passa a ser reivindicada não apenas como um reconhecimento, mas também como uma forma de reparação pelos danos sofridos pela população negra, devido à escravidão. A patrimonialização torna-se, assim, uma forma de dar visibilidade a grupos antes à margem das políticas públicas, melhor dizendo, a patrimonialização pode ser um instrumento de inclusão social.
A patrimonialização, no entanto, também hierarquiza, cria modelos ideais, define regras para escolher o que deve e o que não deve ser reconhecido como patrimônio cultural. Ao patrimonializar os bens culturais, o Estado também exclui aqueles bens que não se adequam a um padrão estabelecido ou que não apresentam um “valor excepcional”. É justamente nesse contexto que aparece uma mudança fundamental na forma de entender o que é a “tradição africana” no Brasil.
De fato, no laudo realizado para o processo de tombamento do Tumba Junsara em 2018, não foi reafirmada a mesma ideia de “tradicionalidade”, entendida como fidelidade a um passado africano que, segundo vários autores, estaria na base dos processos de patrimonialização das religiões afro-brasileiras. Pelo contrário, o que foi defendido pela primeira vez foi a ideia da “milonga”, ou seja, da mistura, do encontro, da interpenetração de práticas e saberes de matriz africana.
A milonga torna-se então uma forma de resistência, o “traço de união entre todas as tradições”, uma prova viva “do fracasso da política de separação entre os povos africanos escravizados”, nas senzalas e nas cidades brasileiras. A força da milonga está em sua “estratégia criativa”, que permitiu ao africano escravizado preservar sua visão de mundo, juntando-a àquelas de seus companheiros de infortúnio.
A milonga é, deste modo, a dimensão ritual do ubuntu, ela expressa os fundamentos da filosofia ubuntu. É da adaptação, do diálogo, da interpenetração das culturas africanas nas senzalas, que nasce a milonga, valor positivo que descarta a falsa ideia da “pureza” cultural.
A milonga – nesse movimento constante em direção ao outro e na aceitação de sua diversidade como constitutiva de nossa própria identidade – é assim uma atualização específica da filosofia ubuntu.
Ambos constituem duas facetas do legado bantu no Brasil.
Ntondele !
Obrigada pela sua atenção.
Stefania Capone é antropóloga, Mestre em Antropologia Social pelo Museu Nacional/UFRJ, Rio de Janeiro (1991), Doutora em Etnologia pela Université de Paris X, Nanterre (França) em 1997. Atualmente é Directrice de Recherche (Diretora de Pesquisa) no CNRS, em Paris. Sua pesquisa concentra-se nas áreas de antropologia religiosa, estudos étnicos, culturas afro-americanas, patrimonialização, migração e transnacionalização religiosa.
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muito interessante, pertinente e atual esse artigo e tente não fulanizar essa filosofia.