Por Roberto Pereira.
Pouco se sabe acerca do uso da navalha na capoeira antiga. Alguns estudiosos atribuem sua origem a uma influência portuguesa. Outros, a uma influência africana, haja visto que os africanos dominavam no Brasil o ofício de barbeiro-sangrador, sendo, portanto, habituados ao manejo da navalha.
Sem sombra de dúvidas, podemos afirmar que se tratava de uma das diversas armas ─ como pedras, paus, facas, cacetes ─ usadas pelos capoeiras em suas escaramuças pelas ruas, becos e praças de diversas cidades do Brasil, até meados do século XX.
Na verdade, a navalha não era uma arma exclusiva dos capoeiras. Basta dar uma vasculhada nas páginas policiais da imprensa ao longo dos século XIX e grande parte do XX, para se ter a dimensão do uso dessa temida arma em conflitos por populares, tanto por homens quanto por mulheres. Em outras palavras, nem todo navalhista era um capoeira. Todavia, no século XIX a navalha se tornou uma arma tão associada aos capoeiras que, segundo o historiador Líbano Soares, especialista no assunto da capoeiragem antiga, ainda naquele século a navalha se tornara o maior símbolo da prática.
Bem pouco conhecida na atualidade, mesmo entre os capoeiras, a navalha foi lentamente perdendo espaço no meio da capoeiragem. Seu declínio ocorreu paralelamente à emergência de uma capoeira desportiva e voltada para o mercado de entretenimento, a partir de meados das primeiras décadas do século XX, na Bahia e no Rio de Janeiro, em particular.
Essa nova capoeira, moderna, em busca de novos públicos e de clientes que pudessem pagar para vê-la ou para aprendê-la, progressivamente se adaptou aos ringues, palcos e espetáculos. A adaptação aos tempos modernos trouxe consigo uma releitura de seu passado, visto como violento, sangrento e associado às temidas maltas do século XIX. Releitura que desembocaria, já por volta do início do século XXI, em um discurso de “capoeira cidadã”, onde os capoeiras não se tocam na roda e qualquer sinal de violência é apontado como algo alheio à prática. Nada mais falacioso.
Assim, ainda no século XX, o berimbau destronou a navalha como o maior símbolo da capoeira. A despeito desse quase completo apagamento da navalha, seu uso e manejo por capoeiras, prática que, como se vê, remonta aos tempos da escravidão, não desapareceu. Alguns raros mestres conseguiram preservar e transmitir esse ensinamento ancestral a alguns poucos discípulos que se incumbiram de perpetuar a tradição do jogo da navalha.
O documentário
Esse documentário ficcional que agora disponibilizamos ao público é uma pequena contribuição para trazer à tona a importância da navalha na história da capoeira. Além disso, trata-se de uma forma de apresentar ao público o próprio jogo da navalha, amplamente desconhecido.
Iniciamos gravações do filme em 2018, de forma completamente independente, e concluímos em 2023, quando conseguimos um pequeno recurso para sua finalização. Para sua realização, contamos com a participação fundamental e indispensável de dois grandes navalhistas maranhenses, o mestre Kaká Serafim (Cláudio Serafim) e o contramestre Jorcelso Sousa, herdeiros de uma linhagem de navalhistas que tem como ancestral outro exímio navalhista e mestre de capoeira: Alberto Euzamor.
Que o filme proporcione um bom debate. E que as novas gerações conheçam e contribuam para a preservação desse que é mais um elemento fantástico da cultura negra brasileira.
Grande Axé!
Aproveite para assistir o documentário ficcional O Jogo da Navalha:
Sinopse:
Antes do berimbau, a navalha era o maior símbolo da capoeiragem. Navalhistas e capoeiras eram o terror da sociedade escravista. Séculos depois, São Luís do Maranhão permanece um dos maiores redutos de navalhistas do Brasil.
Ficha técnica:
Pesquisa, Roteiro e Direção: Roberto Pereira
Direção de fotografia: Paulo do Vale
Montagem e finalização: Marcelo Souza
Trilha e mixagem de som: André Piruka
Produção: Coletivo Volta do Mundo e Ina Ilha
Som direto: Inaldo Aguiar
Segunda câmera: Roberto Pereira
Elenco:
Mestre Kaká Serafim
Mestrando Jorcelso Sousa
Roberto Pereira é diretor de Cinema pela Escola de Cinema Darcy Ribeiro (RJ) e Doutor em História Comparada pela UFRJ. É autor de Rodas Negras – capoeira, samba, teatro e identidade nacional (Perspectiva, 2023). Dirigiu e roteirizou filmes exibidos em festivais de cinema e eventos estaduais, nacionais e internacionais. Foi Visiting Fellow no Departamento de História da Universidade Harvard.