Por Marcos Leitão de Almeida.
No seu post para este blog, a historiadora Mariana Candido afirmou com muita justeza que faltam evidências arqueológicas no sul de Angola. Mas, devemos completar, evidências linguísticas também são escassas. Como africanistas desde a década de 1960 ressaltam incessantemente, não há uma sem a outra na constituição de uma história verdadeiramente local no continente africano. E a verdade é que, malgrado os avanços da historiografia e da arqueologia desde as independências, no sul de Angola, no que se refere à linguística histórica e à arqueologia, tudo está por ser feito.
Quer dizer, quase tudo. Do ponto de vista arqueológico, desde pelo menos a década de 1950, sítios arqueológicos que documentam a presença de pequenos machados, instrumentos bifaciais, talhadores e raspadores foram encontrados na costa (em um sítio chamado Baía Farta) e em outros locais do sul do país. O mais antigo data de 714 mil anos atrás e é um testemunho da antiguidade da ocupação da região por seres humanos. No entanto, o número de sítios arqueológicos referentes ao que africanistas chamam de “Idade da Pedra Tardia” (“Later Stone Age”) cresce acima do esperado, sobretudo quando se considera a dificuldade e a escassez de pesquisas sobre o assunto. Assim, a profusão dos pequenos sítios arqueológicos documentados ao sul de Angola e no Congo, datados por volta de 8 mil anos atrás, sugere que esses pequenos grupos de pessoas viviam da caça e da coleta, uma forma de subsistência indicada pelas pontas de lanças e flechas de pedras deixadas pelo tempo.
Arqueólogos conhecem há muito tempo essa cultura material como “Wilton”, que é característica de uma forma eclética de subsistência que se estendia do sul de Moçambique ao sul de Angola. Historiadores, como Chris Ehret, e arqueólogos e linguistas, como James Denbow e Thomas Güldemann, propuseram em seus estudos que os criadores da cultura Wilton falavam línguas do grupo KhoeSan. Essa história é crucial para desafiar os paradigmas anteriores de conquista e domínio das expansões Banto, que fascinavam os primeiros intérpretes das migrações bantófonas e que ainda hoje informam equivocadamente a percepção popular e acadêmica sobre o assunto. Hoje em dia, sabemos que interações complexas, envolvendo casamento, trocas e comércio, formavam a base das relações íntimas entre populações falantes de línguas KhoeSan e imigrantes bantófonos quando estes chegaram na região por volta do último milênio AEC. Estas interações continuaram durante séculos até que, durante o primeiro milênio da Era Comum, em um período de grandes transformações sociais, as populações bantófonas acabaram se distanciando e deslocando, certamente também pela violência, as populações pioneiras para o sul.
Pouco se conhece sobre as culturas materiais durante o primeiro milênio da era comum no sul de Angola. Cerâmicas, associadas a utensílios de ferro e pedra ou encontradas em contextos com artes rupestres, foram descobertas em Benguela e Baía Farta. Contudo, a datação precisa desses itens e a determinação do estilo de vida de seus usuários – se eram caçadores, pastores ou metalúrgicos – permanecem incertas. Como se sabe há décadas nos estudos africanistas, é aqui que estudos arqueológicos podem se beneficiar de estudos linguísticos, já que estes oferecem hipóteses de migrações, assentamentos e itens lexicalmente reconstituíveis que arqueólogos podem utilizar para guiar e enriquecer suas pesquisas, hipóteses e conclusões.
Por isso, é impossível falar da complexidade social da antiguidade angolana sem
mencionar o aparecimento de três importantes centros na segunda metade do primeiro
milênio da Era Comum. Primeiro, nós temos Divuyu, o sítio arqueológico mais antigo do sul da
África Centro-Ocidental em que duas das inovações sociais mais importantes da região aparecem primeiro: a formação de grandes vilas e a domesticação do gado. Neste local, no delta do Okavango, imigrantes ainda desconhecidos estabeleceram uma sociedade complexa, onde pastores e agricultores, associados a mestres da arte de forjar o ferro, não produziam o metal, mas o comercializavam junto com marfim, peles de animais e conchas do Atlântico. Este
comércio indica rotas de longa distância na África Central antes do ano 1000. De forma notável, outro sítio perto de Divuyu, chamado de Nqoma, tinha laços comerciais com o Oceano Índico, comprovados pela possível troca de marfim e especularita por búzios marinhos e contas de vidro.
O reino de Feti é o mais importante centro arqueológico do sul de Angola do final do primeiro milênio EC. Emergindo entre 700/900 EC até sua virtual extinção em torno de 1400, Feti já foi comparada ao grande Zimbabwe. As tradições locais reconhecem Feti como o primeiro grande Estado no planalto de Huambo, onde é provável que seus habitantes falassem uma língua do grupo Proto-Kunene — apesar da necessidade de mais pesquisas para confirmar essa hipótese. Estas mesmas tradições sugerem que o nome do sítio deriva de efeti, “gênese” em Umbundu contemporâneo, porém, se a derivação é uma etimologia popular ou não é algo que apenas uma pesquisa aprofundada poderá responder.
A exploração desastrada do sítio por Júlio Diamantino de Moura, na década de 1940, e a subsequente inundação da área por uma hidroelétrica causaram uma perda irreparável ao patrimônio arqueológico de Angola. No local, Moura descobriu uma pirâmide de pedra, estruturas circulares e uma elevação coberta por terra preta contendo ossadas de animais e humanos. Os achados indicam um enorme assentamento, similar a uma capital política, práticas funerárias e possíveis rituais. Tratava-se possivelmente da capital de um estado político, isto é, um “reino”. Como tal, sinais de combate e violência faziam parte de seu cotidiano, sugeridos por valas externas, estruturas defensivas e lanças encontradas. Embora muito ainda esteja por ser descoberto, essas evidências indicam uma sociedade com desigualdade social, organização complexa do trabalho e interações violentas com vizinhos.
Pirâmide de Feti. Imagem do artigo “Uma História Entre Lendas”, de Julio Diamantino de Moura, Boletim do Instituto de Angola, nº 71 (1957), p. 55‑75.
Sabemos ainda muito pouco da história antiga do sul de Angola. Mas, do pouco que conhecemos, vislumbra-se uma história densa, não menos complexa do que sociedades africanas mais famosas, como o reino do Congo, Zimbabwe e a depressão de Upemba, para ficarmos apenas na África Central. Como podemos saber mais? Para começar, pesquisas linguísticas capazes de refinar a classificação linguística proposta por Jan Vansina (e que ele mesmo retirou de um estudo clássico publicado poucos anos antes de seu livro) devem ser realizadas para dar claridade às contingências históricas do sul de Angola entre 500 e 1500. Com uma nova classificação refinada, é possível reconstruir vocabulários pertinentes aos domínios da história social, incluindo aqueles pertences às formas de combates, tipos de violência e espécies de guerra. Isto ainda não foi feito para esta região. De todo modo, os vestígios arqueológicos até agora amealhados importam e são um começo ao mesmo tempo desafiador e excitante para a história antiga do continente africano.
Desafiador porque a historiografia recente, infelizmente, tem se concentrado em períodos históricos após o século XVI ou, em contextos anglófonos, após o século XIX. Essa tendência relegou a história antiga à periferia dos estudos históricos, um fenômeno que diversos historiadores têm chamado atenção por sua semelhança com as abordagens coloniais do início do século XX. No Brasil, o declínio no interesse por estudos africanistas anteriores ao século XIX é também uma tendência, com simpósios temáticos dedicados a este período sendo absorvidos por aqueles focados em séculos mais recentes. Na medida em que celebramos 20 anos da lei 10.639, se reforça a importância de reconhecer a história antiga da África como uma parte integrante e vital da disciplina, e não apenas como um “tempero exótico”, condensado em introduções de livros centrados em períodos mais recentes.
Neste contexto desafiador, porém, ainda há focos de resistência e crescimento que vêm, também, do sul global. Exemplos notáveis incluem as escavações em Ilé-Ifé e Oyo-Ilé, Nigéria, sob a coordenação de Adisa Ogunfolakan e Akin Ogundiran, o trabalho no Museu Nacional de Arqueologia de Benguela (MNAB), liderado por Maria Helena Benjamim, e a formação do grupo de trabalho “Arqueologia da África e suas Diásporas”, pela Sociedade de Arqueologia Brasileira. Essas iniciativas são essenciais para romper as divisões fictícias entre “pré-história” e “história” e para desafiar abordagens epistemológicas excessivamente centradas em documentos escritos produzidos por estrangeiros.
No sul de Angola, a maioria das pesquisas ainda está por ser feita. Mas, pela primeira vez desde 1975, há um movimento para formar alianças e avançar no campo da arqueologia na região. A arqueologia linguística, em particular, promete revelar novas camadas de compreensão sobre o passado. É preciso, no entanto, primeiro reconhecer que enquanto continuarmos a dividir o estudo da arqueologia do estudo da história e, na esteira dessa divisão, reinventar um “pré-” apenas para cindi-lo da “história” que se quer contar com os documentos dos arquivos coloniais, continuaremos a alienar o passado distante da África do estado-nação pós-colonial. Como bem afirmou o arqueólogo Akin Ogundiran, na abertura ao 22o Congresso da Sociedade de Arqueologia Brasileira em 2023, para reverter essa situação, precisamos “empregar nossa metodologia eclética de investigação do tempo profundo para trazer culturas ancestrais aos nossos periódicos de história.”
Marcos Leitão De Almeida, PhD em História da África pela Northwestern University e premiado pela melhor tese de doutorado em 2020, é professor na Universidade Federal de Juiz de Fora.
Atualmente, trabalha em um livro sobre a história da escravidão na África Central antiga, que será publicado no Brasil em 2024.
Bibliografia:
CHILDS, Gladwyn Murray. “The Chronology of the Ovimbundu Kingdoms”. The Journal of African History, v. Vol. 11, n. No. 2 (1970), p. 241‑248.
DE MATOS, Daniela, MARTINS, Ana Cristina, SENNA-MARTINEZ, João Carlos, et al. “Review of Archaeological Research in Angola”. African Archaeological Review, (2021). Disponível em: <https://doi.org/10.1007/s10437-020-09420-8>.
DENBOW, James R. “Interactions among Precolonial Foragers, Herders, and Farmers in Southern Africa” in DENBOW, James R. (Ed.). Oxford Research Encyclopedia of African History. [s.l.]: Oxford University Press, 2017. Disponível em: <https://doi.org/10.1093/acrefore/9780190277734.013.71>.
DENBOW, James R. The Archaeology and Ethnography of Central Africa. New York: Cambridge University Press, 2014.
MOURA, Julio Diamantino de. “Uma História Entre Lendas”. Boletim do Instituto de Angola, 1957, p. 55‑75.
VANSINA, Jan. How Societies Are Born: Governance in West Central Africa before 1600. [s.l.]: University of Virginia Press, 2005.
Parabéns pela matéria e pelo blog. Gostei de saber sobre evidências acerca do Reino de Feti. Até então só conhecia as referências míticas e fictícias na boa criação literária de Henrique Abranches, em seu fantástico romance “A khonkava de Feti”
Obrigado pelo comentário, Mestre Bel. Acredito que o artigo citado na bibliografia já dá alguma informação. Mas vamos perguntar para o autor do post sobre algo mais recente.