A pesquisa

A pesquisa

Jogos de combate e arcos musicais

A associação entre jogos de combate e arcos musicais no filme é o resultado do nosso enfoque centrado na capoeira. O objetivo não era uma investigação exaustiva da sociedade e cultura nhaneca, mas o diálogo entre capoeira e os jogos de combate em Angola. Por essa razão o filme não pretende dar um retrato objetivo do modo de vida nhaneca, mas intenta documentar nosso caminho. O filme acompanha Cobra Mansa na busca de suas próprias raízes, começando na sua cidade natal, Duque de Caxias, na periferia do Rio de Janeiro, antes de atravessar o Atlântico e iniciar um diálogo diaspórico a partir do porto de Benguela, de onde 750.000 africanos escravizados foram embarcados para o Brasil.

Mostrar capoeira no interior de Angola teve um sabor de retorno, de levar o Brasil para Angola. Mesmo que imaginária, essa ideia de volta também foi expressada por alguns de nossos interlocutores (veja, por exemplo, o testemunho de Angelino). Da mesma maneira, o projeto tentou levar um pouco de Angola para o Brasil. Seleções do nosso material foram mostradas para capoeiristas, quilombolas e praticantes de religiões afro-brasileiras. Cada um reagiu à sua maneira, mas todos expressavam fortes sentimentos tanto de proximidade quanto de distanciamento, levando às vezes a um reposicionamento de seu juízo a respeito das raízes angolanas (como Mestre Lua Rasta explica, por exemplo, no clipe 6).

Cobra Mansa toca berimbau e Balthazar João Tchatoka, mbulumbumba (Humpata, agosto de 2010)

A discussão e o intercâmbio com mestres e especialistas dos dois lados do Atlântico sobre os vínculos existentes entre as suas tradições ajudou muito na evolução do nosso próprio pensamento sobre o tema. Pesquisas anteriores sobre as origens da capoeira têm enfocado movimentos específicos ou mesmo instrumentos – este também o nosso ponto de partida. O golpe chamado “rabo de arraia” ou “meia-lua de compasso”, por exemplo, é muitas vezes visto como uma marca central da idiossincrasia da capoeira (porque raro em outras artes marciais). O berimbau é considerado o coração da capoeira (mesmo tendo entrado na capoeira numa só região do Brasil e, provavelmente, somente no final do século XIX).

Nós chegamos à conclusão de que os vínculos entre capoeira e jogos de combate nhanecas são muito mais importantes na área espiritual do que em aspectos puramente formais. Tanto a capoeira quanto o engolo dependem de seu particular jogo de corpo – razão do título do nosso filme. Capoeira e as formas angolanas são (ou pelo menos eram) jogos que podiam acabar em brigas sérias. Compartilham essa ambiguidade estratégica. Ainda que o engolo apareça nas narrativas brasileiras sobretudo como dança, podia ser também um combate mortal. Mesmo jogos amistosos podiam acabar mal. Por isso, qualquer pessoa entrando na roda do engolo nos tempos antigos estava a seu próprio risco, sem possibilidade de pedir indemnização. Como diz o mais conhecido refrão do engolo: “Quem morre no engolo não é chorado.”

Soba Patricio Wiliwaliwa demonstra rasteira em Cobra Mansa (Quiteve, 2011)

O filme tenta estabelecer diálogos sem, no entanto, impor uma visão simplista das origens da capoeira. Do ponto de vista de um historiador, considerar a dança da zebra contemporânea como a única origem da capoeira é problemático dado o anacronismo que isso envolve: mudanças aconteceram nos jogos de combate e nas culturas angolanas durante os últimos duzentos anos, pelo menos, de maneira tão dramática quanto a capoeira e a sociedade brasileira mudaram durante esse mesmo tempo. Além do mais, a grande maioria dos africanos escravizados vinha de outras regiões da África Central e Ocidental e, provavelmente, trouxeram seus próprios jogos de combate para o Brasil e as Américas.

Esperamos que mais pesquisas sobre outras formas de cultura complementem nosso conhecimento das muitas tradições que podem ter contribuído para o desenvolvimento da capoeira, além de estudos adicionais sobre artes relacionadas no Atlântico Negro. Portanto, o filme não tem como objetivo fornecer respostas “definitivas” a perguntas sobre as “origens” da capoeira, mas procura fornecer um espaço onde os espectadores possam desenvolver seus próprios pensamentos sobre possíveis raízes e rotas.

Matthias Assunção e Cobra Mansa mostrando a capoeira (Humpata, 2010)