Por Filipe Amado.
A partir de 1920 os jornais paulistanos apresentam uma mudança significativa no modo de se referir à capoeira. Seguindo um movimento que já ocorria no Rio de Janeiro, com nomes como Mello Moraes, Coelho Neto, Anníbal Burlamaqui, conhecido como mestre Zuma, e o próprio Agenor Moreira Sampaio, conhecido como Sinhozinho; começam a surgir inúmeros artigos de intelectuais defendendo a capoeira, regrada e metodizada, como o genuíno esporte nacional.
São médicos, escritores, literatos, jornalistas e até diplomatas que defendem a capoeira em escolas e quarteis, com discursos nacionalistas, enfatizando sua eficiência como arte marcial, seus benefícios fisiológicos e muitas vezes retirando sua ancestralidade negra e escrava, como numa limpeza necessária para torná-la digna de apresentação. Como exemplo, o artigo de Annibal Silveira, ainda um estudante de medicina quando o escreveu, que se formou na Universidade de São Paulo em 1931 e foi professor dessa universidade e livre-docente da clínica psiquiátrica. Seu artigo no jornal Correio Paulistano, em 7 de abril de 1927, começa assim:
Entre as manifestações do trabalho physico voluntário uma existe genuinamente brasileira. Não o será pela divulgação no país nem pelo prestigio de que goze nas rodas desportivas nacionais. Mas a origem della e sobretudo, a camada social que a pratica fazena um jogo typica e inconfundivelmente indígena. Referimo-nos à capoeiragem. Entretanto quase nada sobre ella se tem produzido com viso scientífico.” (Grifos nossos)
O que primeiro nos chama atenção é a origem que é atribuída à capoeira pelo médico. Indígena! Ou seja, um total apagamento da identidade negra, da sua ligação com a escravidão, de seu passado e de seu presente à época, ligado aos populares e especialmente aos negros, que viviam em cidades como São Paulo e usavam da capoeira no seu dia-a-dia.
Nas ruas de São Paulo
No último artigo sobre a capoeira nas ruas de São Paulo, ficou apontada a presença significativa da capoeira entre populares, como uma tradição negra que vem do século XIX e se intensifica em terras paulistanas nas primeiras décadas do século XX. Ela estava presente nas comunidades negras em momentos lúdicos, resolvendo rixas, em conflitos com a polícia, em disputas territoriais de grupos, entre trabalhadores, mulheres e crianças. A capoeira era noticiada frequentemente pelos jornais paulistanos como violência urbana em páginas de ocorrências policiais, principalmente nas duas primeiras décadas do século XX.
Outro exemplo é um artigo do jornal Diário Nacional, com o título de “O jogo da capoeira deve fazer parte da nossa educação physica, injustificável preconceito que contra elle existe.” Assinado por J.C Alves de Lima, que era um diplomata brasileiro nos Estados Unidos, esse artigo faz novamente a sugestão da adoção da capoeira como esporte e luta, apoiado em argumentos médicos higienistas. O artigo, de 6 de novembro de 1927, termina da seguinte forma:
… por que não adoptal-o nas nossas escolas durante as horas de recreio? Outros povos de maior valor physico que se esmurrem à vontade. Nós não. Popularizemol-o, portanto o jogo da capoeira, innato do povo brasileiro. Por isso mesmo nenhum povo no-lo disputará.” (Grifos nossos)
Precisamos entender o contexto da época para explicar essa mudança de perspectiva dos jornais. Para começar, havia a busca por uma identidade nacional entre as camadas intelectuais, cujo maior exemplo foi a Semana de Arte Moderna de 1922. Nesse sentido, enquanto as artes marciais nipônicas se espalhavam pelo mundo, embaladas pela vitória do Japão sobre a Rússia Czarista em 1905, o Brasil buscava a sua arte marcial que faria frente às demais (ASSUNÇÃO, 2013). Além disso, as práticas esportivas ganhavam considerável importância numa visão de saúde com grande influência da eugenia, teoria pseudo-médica que embalaria visões fascistas e nazistas na Europa. Ainda assim, a capoeira era proibida, constando como crime a sua prática.
O fato é que, impulsionados por esses discursos apologéticos à capoeira nos jornais, começam a aparecer capoeiras nos ringues paulistas, inicialmente através de desafios a um suposto invencível lutador de jiu-jitsu japonês, Geo Omori. Temos que lembrar que a capoeira nos ringues, assim como nas ruas, é um fenômeno presente e conhecido em outras cidades brasileiras, como Rio de Janeiro e Bahia, mas até então desconhecido em terras paulistas.
Faremos referência aqui a duas lutas importantes. Na primeira, um capoeira carioca veio lutar em terras paulistas, provavelmente interessado no prêmio e na visibilidade. A luta entre Osvaldo Caetano Vasques e Geo Omori é anunciada pelo Diário Nacional, em 13 de outubro de 1928, com a expectativa de provar “qual das duas lutas é mais eficiente.”
Osvaldo Caetano Vasques é um sambista carioca conhecido por Baiaco, da turma do Estácio, que junto com Ismael Silva fundou a Deixa Falar, primeira escola de samba do Rio de Janeiro, justamente em 1928. Embora Baiaco seja conhecido como sambista, e não como capoeira, sabemos que ele era da malandragem carioca e, portanto, frequentava espaços onde ocorriam a capoeira ou a pernada carioca.
Sem descartar o provável oportunismo de Baiaco, em São Paulo ele efetivamente é apresentado como campeão da capoeira, e sua luta com Omori é assistida com grande expectativa por um gigantesco público no circo Queirolo, estabelecido no centro da cidade.
A luta foi um fracasso e a derrota de Baiaco indignou os jornais, que afirmavam trapaças e marmelada, pois o resultado já estaria combinado antes da luta começar. Mesmo assim o evento abriu espaço para que outros capoeiras se apresentassem com menos medo da repressão à prática até então criminalizada.
É o caso de Argemiro Feitosa, um cearense que fez parte da Marinha brasileira e já residia em São Paulo há sete anos. Feitosa comentou a luta de Baiaco no jornal Diário Nacional e afirmou que um capoeira jamais perderia para um lutador de jiu-jitsu. Aproveita o ensejo e ele mesmo desafia Geo Omori para uma luta. Desafio que é prontamente aceito. Sobre a luta de Baico e Omori, o jornal publica o seguinte comentário de autoria de Feitosa:
Baiaca (Vasques) começou bem, dando o toque inicial seguido de um rabo de frente. Defendendo esse ataque o japonez afastou-se, ficando completamente a descoberto. Era a hora propícia, esplendida para que Baiaca, aproveitando o impulso do rabo de frente passase uma rasteira, seguida de dois rabos de arraya de costas, cahindo immediatamente na posição invencível que é a do pulo do passarinho. Perdeu Baiaca, nessa fase, uma optima oportunidade para pôr fora de combate o seu adversário. Pretendeu o japonez dar uns golpes de perna avançando para Baiaca, ameaçando savatadas. Ficou assim, muitas vezes, apoiado num pé só, completamente a descoberto, perdendo o capoeira muitas oportunidades para passar a rasteira, o rabo de arraya e dar outros golpes de efeito. Às perseguições de Omori, muito facilmente Baiaca se teria esquivado, cahindo no passarinho. Na pegada de gola, o japonez ficou ainda a descoberto para uma tirada de lado – forte golpe no peito produzido pelo pé.”
A análise da luta é exemplar para entendermos a capoeira praticada no início do século XX. Inúmeros golpes e movimentos aparecem, alguns são conhecidos e usados na capoeira atualmente, como o rabo de arraia, e outros, bem difíceis de se imaginar como a “posição invencível que é a do pulo do passarinho”.
O desafio de Feitosa à Omori se transforma num grande acontecimento, com proporções bem maiores do que a luta de Baiaco e com ampla repercussão nos jornais paulistanos. Os jornais A Gazeta, Diário Nacional, Correio Paulistano e Estado de São Paulo noticiam e repercutem a luta, sendo que o Diário Nacional realiza a maior cobertura, com 29 artigos acerca desta luta, de outubro de 1928 a janeiro de 1929, quando ocorre de fato o confronto.
A redação do jornal Diário Nacional se mostra extremamente defensora da capoeira, publicando artigos e incentivando as lutas, como forma de demonstrar a superioridade da capoeira. Como preparativo para a luta, Feitosa é entrevistado pelo jornal em 20 de outubro:
Penso que os pequenos centros onde se ensina agora, em pequena escala, a capoeira, deveriam congregar-se e formar um grande instituto, muito mais eficiente para a difusão desse esporte. (…) Há na capoeira 17 golpes principais, conhecidos por todos os capoeiras. Estes são melhores segundo a maior ou menor habilidade de aplica-los, devendo fazer uso de muitos contragolpes e movimentos supplementares.”
Os relatos de Feitosa ao jornal são interessantíssimos e revelam facetas da capoeira daquele período. Percebe-se que havia estruturações em relação aos golpes e que, segundo o capoeira, existiam diversos centros de ensino. Feitosa ainda afirma que pretendia publicar um livro sobre capoeira e abrir uma escola desse esporte.
A luta entre Feitosa e Omori se torna um evento nacional, com ampla repercussão nos jornais, que se mostram entusiastas da capoeira e extremamente empolgados em provar a superioridade da “arte nacional” sobre a estrangeira. Autoridades de várias cidades comparecem ao evento, realizado no campo de futebol do São Bento, em janeiro de 1929, com amplo público presente.
A luta novamente foi um fracasso e terminou com vitória do japonês no terceiro assalto, com a vitória descrita como fácil nos periódicos.
A derrota de Feitosa representou uma grande frustração para os jornais e aparentemente para o público, contagiado pelo sentimento nacionalista que envolveu a capoeira e pela magnitude que a luta alcançou. Contudo, para nós ela demonstra os caminhos que a capoeira tomou nas primeiras décadas do século XX, a disputa que se formulava sobre seus significados, sua atuação e seu lugar na sociedade burguesa republicana, ávida por símbolos nacionais, construtores de uma identidade brasileira. A repercussão nos jornais e a magnitude que a luta ganhou, com amplo público, presença de autoridades e clamor popular, revela um capítulo importante sobre a capoeira em São Paulo, local esquecido dentro da historiografia da capoeira e que agora descobrimos que sediou um importante evento de luta, cuja capoeira (nem tanto Feitosa) era a estrela principal.
Feitosa some dos periódicos e outros capoeiras aparecem, mas sem a mesma repercussão. A capoeira permanece timidamente nos jornais paulistas até meados da década de trinta, quando some de vez para aparecer somente em 1949, quando Mestre Bimba vem a São Paulo com seus alunos, visita a academia de Kid Jofre e participa de lutas no estádio do Pacaembu.
Sabemos da importância das lutas e das vitórias de Mestre Bimba para consolidar seu projeto de capoeira regional baiana, o que nos faz pensar como seria a capoeira em São Paulo se Feitosa tivesse vencido sua luta, publicado seu livro e aberto sua escola de capoeira, assim como os demais capoeiras que apareceram discretamente em notícias de lutas, ou sequer apareceram.
A capoeira pode ter sumido dos ringues e dos jornais paulistas na década de trinta, mas certamente não sumiu das ruas. Pelo contrário, ela deu continuidade aos seus movimentos de transformação e sobrevivência e se juntou ao samba, que explodia nas praças, largos, cortiços e porões das comunidades negras paulistanas, adquirindo novos nomes e musicalidades, mas mantendo golpes, movimentações e sua dialética de significados: luta e jogo, brincadeira e violência, camaradagem e rivalidade, entre outras polissemias. Em São Paulo ela passou a ser conhecida como tiririca, mas este é assunto para o nosso próximo artigo.
Referências bibliográficas:
AMADO, Filipe. Abre a Roda Minha Gente que o Batuque é Diferente, tiririca, capoeira e samba em São Paulo, 1900-1970. Dissertação de mestrado, Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) USP, 2021.
ASSUNÇÃO, Matthias Röhrig. Ringue ou Academia? A Emergência dos Estilos Modernos da Capoeira e seu Contexto Global. Rio de Janeiro, 2013. Disponível em: http://www.scielo.br/hcsm.
CUNHA, Maria Clementina Pereira. “Não me Ponha no Xadrez com esse Malandrão.” Conflitos e Identidades entre Sambistas no Rio de Janeiro do Início do Século XX. Revista Afro-Ásia, 38 (2008), 179-210.
SERAFIM, Jhonata Goulart e AZEREDO, Jeferson Luiz de. A (des) Criminalização da Cultura Negra nos Códigos de 1890 e 1940. Amicus Curiae V.6, N.6 (2009), 2011
Jornais Consultados:
Correio Paulistano, 7 de abril de 1927
Diário Nacional, 6 de novembro de 1927
Diário Nacional, 13 de outubro de 1928
Diário Nacional, 21 de outubro de 1928
Diário Nacional, 6 de novembro de 1927
Diário Nacional, 19 de outubro de 1928
Diário Nacional, 13 de janeiro de 1929
Filipe Amado é historiador (FFLCH USP) e mestre em Estudos Brasileiros (IEB USP) com uma dissertação sobre capoeira, tiririca e samba em São Paulo. É professor de capoeira no grupo Projeto Liberdade Capoeira, mestre de bateria no cordão carnavalesco Kolombolo Diá Piratininga e professor de história na rede pública de São Paulo. Pesquisador e palestrante sobre história da capoeira, possui um canal de youtube sobre o tema.
Parabéns, Filipe, pelo excelente artigo. Chamou-me a atenção, dentre outras pérolas do texto, a palavra ‘savatadas’ em um dos trechos extraídos de jornais. Interessante esse termo, que deve vir da luta francesa savate, que guardava, em seu início, algumas semelhanças com a capoeira. Aguardando o próximo! Um abraço!