Por Mestre Gato (Fernando Campelo Cavalcanti de Albuquerque).
A Roda de Capoeira e o Ofício de Mestres
A Roda de Capoeira e o Ofício dos Mestres de Capoeira são bens culturais reconhecidos como Patrimônio Cultural do Brasil desde 2008. A Roda de Capoeira foi reconhecida internacionalmente pela Unesco, em 2014, como Patrimônio Imaterial da Humanidade.
Seguindo as diretrizes da publicação Salvaguarda da Roda de Capoeira e do Ofício dos Mestres de Capoeira – Apoio e Fomento, IPHAN, novembro de 2017, o Grupo Senzala de Capoeira pretende atuar na Salvaguarda da Capoeira, através de um inventário das características, práticas e fundamentos da capoeira que vem praticando, ensinando e difundindo no Brasil e no mundo, ao longo dos últimos 56 anos.
A capoeira, como arte popular, tem uma subjetividade própria, nuances que seus praticantes sentem, entendem, mas muitas vezes não conseguem explicar, devido a essa subjetividade. Por outro lado, é importante fazer um inventário de suas características e fundamentos, para sua própria preservação.
A capoeira é uma manifestação popular dinâmica, que vem se transformando desde seu início, com seus praticantes, em função do contexto social. É luta, brincadeira, dança, expressão corporal, ritmo, todos esses elementos presentes em sua prática, que precisa ser exercida em um coletivo, a Roda de Capoeira, que integra e inclui seus participantes de forma espontânea.
A Roda de Capoeira e o Ofício de Mestres
- Aquecimento e ginástica, desenvolvidos a partir dos fundamentos básicos da capoeira, utilizando a ginga e negaças no treinamento de ataques e defesas, fintas, movimentos de jogo alto, médio e baixo, praticando as esquivas e posições defensivas, as guardas, as descidas e subidas, os passos e passadas. Realização desses treinamentos com todo o grupo de alunos gingando ao mesmo tempo e fazendo o condicionamento físico e muscular através de prática de posições e movimentos de capoeira, como bananeira, corta capim, aú com queda de rins, rolê, trocas de negativa variadas, dentre outros.
- Treinamento de golpes e de sequências de golpes em alvos leves e em saco de bater.
- Treinamento dois a dois, simulando situações de jogo.
- Treinamentos de ataques, defesas e contra-ataques.
- Utilização de sequências de treinamento, como as da capoeira regional, variações com utilização de esquivas e defesas, como esquiva de frente e lateral. Treinamento de sequências de jogo baixo e médio, procurando praticar as entradas de cabeçadas, rasteiras, bandas e tesouras.
- Desenvolvimento da didática para o aprendizado, como treinar possíveis formas de ataques dos golpes, por exemplo, fazer uma armada entrando em diagonal ao objetivo ou defendendo e contra-atacando em diagonal.
- Estímulo à criatividade e espontaneidade do aluno, através de metodologia de ensino intuitivo.
- Aprimoramento do ritmo na movimentação e no jogo, através de treinamento seguindo diferentes ritmos, respeitando as tradições e rituais da capoeira, conforme descritos a seguir:
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Jogo de DentroJogo para trabalhar a continuidade e proximidade, exercitando as esquivas de coluna, quedas de rins, entradas e saídas de tesouras, procurando se manter próximo ao berimbau todo o jogo. Ritmo: Jogo de Dentro
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Jogo de IúnaJogo para trabalhar a continuidade e floreios, usando balões da sequência da Cintura Desprezada da Regional. O Grupo Senzala passou a liberar o Jogo de Iúna apenas para os graduados de corda azul para cima. Ritmo: Iúna.
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Jogo de AngolaRitmo: Angola ou São Bento Pequeno, médio ou lento.
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Jogo de São Bento GrandeRitmo: São Bento Grande de Angola rápido ou São Bento Grande de Regional.
Uniforme e cordas
Tal metodologia de treinamento proporcionou rápido desenvolvimento da técnica e eficiência dos golpes dos capoeiristas do Grupo Senzala. Além disso, o grupo adotou um uniforme constando de calça de malha branca (que passou a ser chamada de abadá) e um sistema de graduação marcado nas cores das cordas dos alunos.
O aluno, ao ser batizado, recebia a corda branca, passando sucessivamente para a amarela, laranja e azul, que equivalia ao nível inicial avançado, quando o aluno deveria apresentar na cerimônia de graduação o conhecimento dos toques de berimbau e cantigas e fazer um jogo de Iúna, demonstrando os balões da cintura desprezada.
Posteriormente seguem-se as cordas verde, roxa e marrom. Após um tempo na corda marrom, o aluno era proposto para a corda vermelha, passando a ser considerado um representante do Grupo Senzala. Na década de 1990, Mestre Peixinho criou a corda cinza, para o nível intermediário entre iniciante e avançado, após a corda laranja e antes da azul, que foi adotada pelos demais mestres do Grupo Senzala.
Metodologia do grupo
De volta ao Rio de Janeiro, o grupo discutia a forma de treinar aqueles movimentos, o jogo baixo, o jogo alto, as malandragens observadas, realizando verdadeiros laboratórios de treinamento que, junto com as visitas às rodas dos mestres Artur Emídio, Zé Pedro, Roque, Celso de Pilares, no Rio de Janeiro, iam fortalecer a metodologia de treinamento e a didática do Grupo Senzala de Capoeira.
Desde o final dos anos 60, o Grupo Senzala passou a organizar a roda de capoeira com 3 berimbaus, Gunga, Médio e Viola, um atabaque, um ou dois pandeiros e às vezes, um reco-reco. As aulas constavam de 3 partes, um aquecimento através de movimentos tirados da capoeira (Mestre Gil Velho deu grandes contribuições neste sentido), treinamentos de golpes, sequências e situações de jogo e a roda de capoeira. No final dos anos 70, devido ao grande número de alunos nas aulas, Mestre Garrincha começou a fazer várias rodas antes da roda final, o que passou a ser uma prática comum do Grupo Senzala.
Fundamentos do grupo
Além das características acima descritas, os mestres do Grupo Senzala procuram praticar e ensinar a capoeira segundo os seguintes fundamentos e princípios:
- respeito às tradições e rituais da capoeira, com o ritmo do jogo comandado pelo berimbau gunga;
- respeito aos capoeiristas e mestres mais velhos, construção e manutenção de um ambiente de camaradagem e receptivo aos capoeiristas de todas as origens;
- disciplina, desenvolvimento do nível técnico dos capoeiristas e estabelecimento de um padrão de condicionamento físico no nível de um atleta;
- cultivo da humildade e do esforço de aprender com cada parceiro de jogo;
- desenvolvimento da percepção do ritmo e do outro, buscando sempre uma situação favorável no jogo e não se deixando surpreender, mas aceitando de bom humor as pegadas e buscando com tranquilidade sua revanche;
- estímulo ao bom humor e à brincadeira no jogo.
Material de grande excelência, parabéns sinto muito orgulho.
No texto sobre Jogo de Dentro” a mim me parece que onde consta “… próximo ao berimbau…” deveria constar “… próimo ao oponente…”.
Acompanho meio de longe o Grupo Senzala e achei legal a postagem bem como o esclarecedor comentario do mestre Itamar. Gratidã!
Conheci o grupo senzala na travessa angrense, RJ em 1992 e fiz uma aula com o saudoso mestre peixinho e participei de boas rodas junto com os mestres gato, itamar, ramos, marrom e feijão. Grandes lembranças! Axé capoeira.
História de amor a capoeira, naquele tempo com tanta descriminação. Valeu grupo senzala por toda a sua história e dedicação a essa arte capoeira. Salve, muito axé!
A capoeira com o ritual do berimbau, ritmo e jogo arte/luta/dança, nasceu no Recôncavo Baiano. Aqui no Rio de Janeiro, nos anos 50, somente havia a capoeira dos malandros dos morros e do samba, além da capoeira de Sinhô. Então nossa capoeira tem raízes baianas, adaptada e influenciada pela capoeira carioca daquela época, cujos mestres eram todos baianos.
Discordo que a capoeira do Grupo tenha raízes baianas. Paulo e Rafael, que eram os ” lideres” do Grupo na época, somente haviam treinado 5 meses com Bimba, ou seja, só aprenderam a fazer as oito sequências. Os baianos que aqui se instalaram, obviamente declinaram para a capoeira carioca. Mestre Bimba era o Deus da capoeira, então muitos procuravam ensinar as sequências de Regional mas não significa que TODOS seguiam essa linha. Nunca, pelo menos que eu lembra, jogamos sob o ritmo de jogo de dentro; quem começou a resgatar este toque foi o Peixinho, muitos a nos depois, já no Copa Leme. O corda azul tinha que mostrar dois toques, sendo um de Regional e outro de Angola; tinha que cantar duas cantigas dos dois estilos. Faltou a corda roxa que foi sugeria pelo Camisinha, quando era do grupo. Nem todas as rodas eram feitas com três berimbaus, já usamos um, dois, três e até quatro, tenho fotos. O restante está muito bom.
Obrigado por sua contribuição, Mestre Itamar, e os detalhes que acrescentou a história do grupo. Também por chamar a atenção para a limitada exposição dos irmãos Flores ao treino do Bimba. Mas outros capoeiristas do grupo continuaram a aprender com os mestres baianos, certo? Um abraço, da equipe do capoeirahistory.
Muito bom conhecer um pouco mais sobre o nosso grupo em forma de texto, mesmo que tenham passado oralmente na maioria das vezes…
Acho que poderíamos criar também uma apostila em comum a todos os núcleos do grupo para que de maneira comum os alunos passassem a conhecer melhor a história do grupo…
Parabéns pelo grande trabalho e ensinamentos
Axé Capoeira e Viva a Senzala!!!