Por Katya Wesolowski (Camarão)
Manda saltar aí, capoeirista!”
Gentilmente, Tourinho lançou seu corpo baixo e musculoso para frente nos paralelepípedos da íngreme ladeira da Pedro Américo. Completou o movimento com um aú que virou salto mortal para trás, os chinelos ainda colados, por milagre, aos seus pés. Meu coração deu um pulo, preocupada que, desta vez, seus braços iriam falhar e deixá-lo bater com a cabeça no chão. Os homens sentados nos bancos de plástico no lado de fora do botequim aplaudiram e ergueram seus copos de cerveja. Tourinho abriu um sorriso largo para mim, exigindo elogios. No fundo da Pedro Américo, atravessamos o beco que liga com a Tavares Bastos e seguimos nossos próprios caminhos: Tourinho virando à esquerda, seguindo para casa por uma curta descida e eu à direita, numa caminhada mais longa, ladeira acima.
Entre 2001 e 2004, quando conduzia pesquisas etnográficas sobre a capoeira no Rio de Janeiro para o doutorado em antropologia, morei no alto da Rua Tavares Bastos, no Catete. Escolhi esse bairro por causa de seu casario histórico, demografia heterogênea e localização geográfica: eu podia chegar facilmente ao Humaitá, onde treinava com Mestre Camisa três noites por semana, e também podia pegar um ônibus ou o metrô para a Zona Norte, onde mantinha contato com vários grupos de capoeira. Antes de cursar a pós-graduação e me tornar antropóloga, comecei a viajar para o Rio de Janeiro como capoeirista, com meu primeiro mestre, Mestre Beiçola, que me apresentou a sua extensa rede de capoeiragem na Zona Norte. Quando cheguei a morar no Rio, três anos depois, para realizar trabalhos de campo, já tinha feito a transição para o ABADÁ-CAPOEIRA, treinando primeiro com Mestra Edna, em Nova Iorque, e depois com Mestre Camisa, no CIEP do Humaitá.
Descobri muitas diferenças estilísticas, pedagógicas e sociais entre a capoeira da Zona Sul e da Zona Norte. No entanto, segundo minhas pesquisas, o papel da capoeira na vida de jovens carentes de diversas áreas da cidade foi consistente. Minha experiência com esses jovens e particularmente com Tourinho, cuja história reconto aqui, me ensinou o poder transformador da capoeira. Como os mestres e professores costumavam me dizer, não era nas creches e escolas primárias particulares ou academias onde muitos deles ensinavam capoeira, mas nas comunidades pobres que os “capoeiristas são feitos”. O nascimento de Tourinho como capoeirista é marcado, em minhas anotações de campo, pela transição do meu uso de seu nome de batismo, Matheus, para o uso de seu apelido: “Tourinho”, que encapsulou sua força e teimosia e simbolizou sua nova identidade e aceitação no mundo da capoeira.
Conheci Matheus pela primeira vez na Rua Tavares Bastos, uma rua de paralelepípedos que serpenteia por um quilometro e meio até o topo de uma colina que marca o limite dos fundos do Catete. Como todo o Catete, a Tavares Bastos foi construída nos séculos XVIII e XIX, quando o comércio crescente empurrou o Rio para fora dos portos e da baía interna em direção ao mar. A Tavares Bastos e a adjacente Rua Pedro América foram esculpidas nas colinas que antes eram pedreiras que forneciam material para a construção da Igreja da Glória e outros templos cariocas. No século XIX, os proprietários de pedreiras e integrantes da classe de comerciantes construíram grandes sobrados enfeitados com tijolas portuguesas azuis e brancas e casas mais humildes ao longo da Tavares Bastos, onde viviam lado a lado com seus operários. No alto da colina, os proprietários de terra mantinham uma chácara para cultivar alimentos e fugir do calor e do caos das ruas ladeira abaixo. Depois da Segunda Guerra Mundial, devido ao crescimento da população do Rio, a área no alto da colina se transformou numa pequena favela.
A mistura arquitetônica da Tavares Bastos, agora também pontuada por torres de apartamentos do século XX, reflete uma demográfica persistentemente mista no sentido socioeconômico. Hoje, num microcosmo da cidade maior, a classe média e famílias pobres, artistas, turistas e estrangeiros expatriados convivem lado a lado, do alto ao pé da Tavares Bastos. Eu morava no alto da colina, logo embaixo da entrada da favela, num sobrado subdividido do século XIX. Na parte inferior, na última curva antes que os paralelepípedos da Tavares Bastos encontram o asfalto da Rua Bento Lisboa, fica um dos últimos cortiços existentes do século XIX. A fachada estreita da casa de dois andares, espremida entre outra casa mais moderna e bem cuidada e um muro de pedra, é enganosa. Passando pelas portas dilapidadas à direita, você descobrirá um terceiro nível subterrâneo e uma longa passarela ladeada por apartamentos de um quarto que levam a um pátio ao ar livre e um sanitário comum. Nesse ambiente sombrio e decadente viviam dezenas de famílias, entre elas Matheus e seus companheiros constantes, seu melhor amigo Erick e a prima de Erick, Debora.
Conheci Matheus pela primeira vez quando tinha seis anos de idade. Era pequeno em tamanho, mas maduro para sua idade. A gordura de bebê que persistia em suas bochechas e barriga contrastava fortemente com sua força muscular e independência impetuosa. Erick era o oposto de Matheus em todos os respeitos. Um ano mais velho, era alto e magro, sua pele bronzeada e cabelos branqueados pelas horas passadas com Debora e Matheus na Praia do Flamengo, que fica nas proximidades. Matheus era cheio de energia, rebelde e dispensava a autoridade ou afeto dos adultos, mas Erick era quieto e pensativo, disposto a andar de mãos dadas comigo quando andávamos pela rua. Debora tinha dezessete anos e, apesar de uma expressão um tanto mal-humorada e dentes malcuidados, era dona de uma beleza esguia. Tinha largado o colégio e, desempregada, passava os dias cuidando de seus irmãos menores, além de Erick – cuja mãe estava doente – e Matheus, filho de uma mãe solteira que estava sobrecarregada com nove filhos pequenos.
Nas noites de terça e quinta-feira, eu, Matheus, Debora e Erick pegaríamos um atalho para a Pedro Américo, caminhando até o casarão na entrada do Santo Amaro, uma favela um pouco maior que fica no alto da rua homônima e logo embaixo da Santa Teresa. Naldo, um graduado do ABADÁ na época, tinha começado a ensinar a crianças e adolescentes da comunidade. Naldo cresceu e ainda morava na comunidade com sua esposa, filha pequena, mãe e avó e tinha conquistado a confiança dos pais da vizinhança. A popularidade de suas aulas podia ser medida pela pilha crescente de chinelos de vários tamanhos largados na entrada do pequeno centro comunitário durante as aulas. Havia tantas meninas quanto meninos – talvez mais – uma anomalia no início dos anos 2000, mas um indício da aceitação crescente de mulheres na capoeira (e da beleza e charme de Naldo, que também mantinham as jovens mães por perto para assistirem as aulas).
Matheus era o aluno mais dotado de Naldo. Sua força atarracada e coragem – que logo o fizeram ganhar sua alcunha – deram a Tourinho uma facilidade surpreendente de dominar até os mais difíceis floreios. Naldo demonstraria um movimento acrobático uma vez e, depois de algumas tentativas, sua língua roseada aparecendo entre os lábios, de tanto se concentrar, Tourinho conseguiria replicá-lo – gritando: “Olhem, sou Naldo!” Não era apenas o jogo de capoeira do Naldo que Tourinho imitava, mas a postura e a atitude de um capoeirista mais velho. Ele andava para as aulas com ar de valentão, a camisa enfiada no abadá, mostrando com orgulho no seu peito nu o colar de miçangas que eu lhe dera após minha viagem à Angola, dizendo a quem perguntasse que vinha do “lar ancestral” da capoeira. Ele se vangloriava de suas aventuras infantis nas ruas e – incentivado por Debora – de suas várias namoradinhas.
Naldo começou a levar Tourinho para o aulão mensal de Mestre Camisa, que reúne todos os instrutores e alunos do ABADÁ do Rio para treinarem juntos. Todos gostavam de ver Tourinho jogar e de jogar com ele e logo o menino estava aceitando convites para batizados e apresentações pela cidade – um capoeirista mirim com tanta habilidade na roda sempre agradava ao público. Tourinho mostrava com orgulho as camisetas que ganhava nesses eventos, recontando os jogos passo a passo, e como um colecionador de cartões de beisebol, que cita de cor as estatísticas dos jogadores famosos, ensinando os nomes e as qualidades de seus capoeiristas preferidos às outras crianças no casarão.
Nos meses que antecederam o batizado – aquela cerimônia importante que marcaria seu ingresso formal no ABADÁ e no mundo maior da capoeira – os alunos do Naldo tentaram adivinhar com grande entusiasmo quais professores os “batizariam”. Na manhã do batizado, Erick e Tourinho me esperaram impacientes em frente de casa, recém-saídos do banho, abadás enrolados e firmemente amarrados com suas corda cruas, que em breve seriam substituídas por novos cordões de aluno pintados de amarelo nas pontas. Eles correram para o CIEP na Glória, onde dezenas de professores e alunos do ABADÁ (o número de capoeiristas facilmente superando o do público) estavam se reunindo. A cerimônia durou várias horas e incluiu a entrega dos cordões e apresentações de maculelê, puxa de rede e samba de roda que os alunos do Naldo tinham ensaiado por várias semanas. Para Tourinho, Erick e muitos dos jovens capoeiristas presentes, até aquele momento, o batizado foi o evento mais importante de suas jovens vidas.
Nem todos os alunos do Naldo tinham o talento corporal de Tourinho. A Erick lhe faltava a mesma coragem e por isso tinha dificuldade com os movimentos acrobáticos. Ele me preocupava, porque estava sempre na sombra de Tourinho e nunca conseguia a sensação do voo de um corpo no ar que tantos jovens capoeiras desejam e curtem. Como um aluno me disse, “a capoeira é como voar para a lua”. Mas chegar à lua pela capoeira pode assumir várias formas. Um dia, descendo a Tavares Bastos, ouvi os sons melódicos de um berimbau viola. Virando a última curva na rua, vi Erick de pé, em frente à sua casa, rosto erguido para o sol, tocando o pequeno berimbau com todo o coração. Dente, um capoeirista habilidoso e confeccionador de instrumentos, tinha percebido que Erick sentia a atração pela música –, muitas vezes ficando depois da aula para aprender ritmos no atabaque ou lidando desajeitadamente com o berimbau do Naldo. Então, Dente fez para Erick um instrumento de tamanho infantil. Todos os dias, Erick tocava seu berimbau, tornando-se mais habilidoso e encontrando seu próprio lugar na capoeira.
Discretamente, sem alarde, Debora também evoluiu como capoeirista, ao lado dos meninos de quem cuidava. No início, ela teve receio de treinar porque era muito mais velha e alta que os outros alunos no casarão. Mas finalmente a convenci a tentar e ela persistiu obstinadamente, melhorando com o tempo e transitando de seu papel de cuidadora para ser capoeirista por conta própria. No início, a mãe de Debora ficou preocupada: “Minha filha já é brigona!” – me disse. Era verdade que Debora frequentemente exibia hematomas e arranhões, sinais reveladores de brigas com seus irmãos e outras crianças na rua. Mas a capoeira no casarão não incitava a agressão. Pelo contrário, forneceu aos jovens uma forma alternativa de expressão corporal. Muitas vezes, fiquei impressionada quando as rasteiras ou martelos que atingiam seu alvo – algo que na rua teria provocado uma briga – foram aceitos amigavelmente nas rodas infantis.
A declaração de Tourinho – “Sou Naldo!” – verbalizou um desejo comovente que percebi em muitos dos jovens capoeiristas que conheci nas favelas: o desejo de se tornar alguém com habilidade e reconhecimento. Segundo um capoeirista mais velho que cresceu na Rua Santo Amaro, numa entrevista:
Eu praticamente vivia na rua, não ficava parado em casa. Um dia eu assisti uma roda de rua na feira da Glória e o que mais me impressionou eram os garotos de meu tamanho jogando. E pensei eu tenho que fazer isso. Porque uma pessoa chega e você não sabe quem é, não é ninguém. Mas o cara entra na roda, começa jogar e você vai ver ele de outra forma – vai saber que ele é respeitado. E eu queria isso também – respeito onde eu morava. Meu bairro tem muitas pessoas pobres e muita criminalidade. E a marginalidade, as crianças e adolescentes têm mais tendência a trilhar. A capoeira me deu outro rumo.”
Naldo estava muito consciente não só do potencial de Tourinho, mas de sua própria responsabilidade com o jovem capoeirista: “Ele quer ser como eu, portanto tenho que tomar cuidado com o jeito que me comporto. Às vezes ele fala para as pessoas que sou o pai dele e eu deixo porque quero fazer parte de sua vida, não apenas na capoeira”. Quando Naldo descobriu que Tourinho estava se comportando mal na escola, apareceu na sala de aula um dia, para espanto de Tourinho, para conversar com seu professor. Quando o comportamento de seu discípulo tinha melhorado, Naldo o recompensou com material escolar novo.
Mas Naldo também observou, não sem orgulho, que Tourinho tinha algo dentro dele que fatalmente o fazia um capoeirista: “Tourinho é a essência da capoeira. A capoeira está no sangue dele. Mesmo que ele pare de treinar amanhã, ele sempre será capoeirista”. Ao mesmo tempo em que pareceu naturalizar o talento de Tourinho para a capoeira, Naldo também reconheceu astutamente que é o ambiente em que crianças como Tourinho crescem que as torna capoeiristas: “As crianças da comunidade não têm limites. Elas sempre têm que superar barreiras e se adaptar às novas circunstâncias. Portanto, se você lhes dá um pouco de segurança, eles aprendem rápido”. Ironicamente, a falta de “limites” vem de crescer num ambiente com recursos limitados. Quando os únicos playgrounds são as ruas onde o futebol é jogado com os pés descalços e as pipas soltadas dos telhados, as crianças desenvolvem uma destreza audaz e corporal. Quando os recursos são escassos – às vezes nada mais que uma pipa ou um senso de autoestima – as crianças desenvolvem ousadia e criatividade (e às vezes malandragem e agressão) para segurar o que é deles. Essas atividades promovem a desenvoltura e autoconfiança, habilidades de sobrevivência necessárias em condições de vida precárias. A capoeira também cultiva essas qualidades, mas com um senso de graça, beleza, liberdade e camaradagem.
No final, talvez a capoeira tenha sido demasiadamente fácil para Tourinho. Ele pode ter se identificado com ela, mas nunca desenvolveu o compromisso, o próximo passo importante na jornada de um capoeirista. Em 2015 eu infelizmente soube pelo Facebook que Tourinho tinha falecido. Ao que parece, a capoeira não foi uma força forte o suficiente em sua jovem vida. Quando adolescente, ele sentiu a atração do tráfico de drogas. Naldo, ainda ensinando e respeitado em Santo Amaro, aproximou-se dos traficantes da comunidade e pediu que proibissem Tourinho de se envolver. Ele tinha potencial como capoeirista. Eles concordaram. Mas quando Tourinho se mudou com sua família para outra comunidade, onde talvez mais uma vez ele se sentiu como um “João ninguém”, não havia ninguém para impedi-lo. Acabou preso e enviado para uma penitenciária onde, em circunstâncias incertas, morreu.
O que impediu Tourinho de se comprometer com a capoeira? Por que ele não perseguiu seu sonho de infância, como ele sempre me disse, de um dia se tornar um professor “como Naldo”? Será que Tourinho era em demasia “a essência da capoeira”? Rebelde demais? Ou será que a capoeira não apresentou um desafio suficientemente grande para impedi-lo de perseguir seu próximo objetivo. Talvez ele tenha aprendido muito jovem a voar alto demais, e – como Ícaro, que voou muito perto do sol com asas de cera – caiu cedo demais.
Matheus Bernardo (13/07/1995 – 04/05/2015) – Descanse em Paz.
Katya Wesolowski (Camarão) é professora de Antropologia Cultural e Dança na Universidade de Duke, nos Estados Unidos. Atualmente está escrevendo um livro de memórias etnográficas sobre seus mais de 20 anos jogando, pesquisando e agora ensinando a capoeira. Seus trabalhos anteriores incluem: “Professionalizing Capoeira: The Politics of Play in Twenty-First-Century Brazil.” (Latin American Perspectives. Vol. 39, No. 2, 2012); “From ‘Moral Disease’ to ‘National Sport’: Race, Nation and Capoeira in Brazil.” (In: Sports Culture in Latin American History, University of Pittsburgh Press, 2015). E, no prelo, “Imagining Brazil in Africa: capoeira’s transatlantic roots and routes” (In: Capoeira and Globalization: Interdisciplinary Studies of an Afro-Brazilian Cultural Form. Cambridge University Press) and “Baile Funk and Kuduro: (dis)articulations of national belonging in Brazil and Angola” (In: Dancing the African Diaspora: Theories of Black Performance in Motion. Duke University Press). Este artigo foi extraído de sua tese de doutorado, “Hard Play: capoeira and the politics of inequality in Rio de Janeiro” (Columbia University, 2007), baseado em pesquisas apoiadas pela Wenner-Gren Foundation.
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